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Q2104806
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Atenção: Considere o texto abaixo para responder à questão.
1. Quando me acontecer alguma pecúnia, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não muito longe do litoral, que o
litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça e a graxa do porto. Minha ilha ficará no justo ponto de
latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a
praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada
confraternização.
2. De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre. Objetais-me: “Como podemos
amar as ilhas, se buscamos o centro mesmo da ação?” Engajados; vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável.
Por onde fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos
gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenos
atmosféricos.
3. E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos regatos – tudo isso
existe fora das ilhas, não é privilégio delas. A mesma solidão existe nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em
terra firme.
4. A ilha me satisfaz por ser uma porção curta de terra (falo de ilhas individuais, não me tentam aventuras marajoaras), um
resumo prático dos estirões deste vasto mundo, sem os inconvenientes dele, e com a vantagem de ser uma ficção sem deixar de
constituir uma realidade. A casa junto ao mar, que já foi razoável delícia, passou a ser um pecado, depois que se desinventou a
relação entre homem, paisagem e morada. O progresso técnico teve isto de retrógrado: esqueceu-se do fim a que se propusera.
Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que ele tornou muito confortável, mas invisível. Fez-se numa escala de massas,
esquecendo-se do indivíduo, e nenhuma central elétrica será capaz de produzir aquilo de que cada um de nós carece na cidade
excessivamente iluminada: certa penumbra. O progresso nos dá tanta coisa, que não nos sobra nada nem para desejar nem para
jogar fora. Tudo é inútil e atravancador. A ilha sugere uma negação disto.
5. Serão admitidos poetas? Em que número? Se foram proscritos das repúblicas, pareceria cruel bani-los também da ilha de
recreio. Contudo, devem comportar-se como se poetas não fossem: pondo de lado o tecnicismo, a excessiva preocupação literária, o
misto de esteticismo e frialdade que costuma necrosar os artistas. Sejam homens razoáveis, carentes, humildes, inclinados à pesca e
à corrida a pé. Não levem para a ilha os problemas de hegemonia e ciúme.
6. Por aí se observa que a ilha mais paradisíaca pede regulamentação, e que os perigos da convivência urbana estão presentes.
Tanto melhor, porque não se quer uma ilha perfeita, senão um modesto território banhado de água por todos os lados e onde não seja
obrigatório salvar o mundo.
7. A ideia de fuga tem sido alvo de crítica severa nos últimos anos, como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo,
de um sofrimento, de uma chateação. Como se devesse o homem consumir-se numa fogueira perene.
8. Estas reflexões descosidas procuram apenas recordar que há motivos para ir às ilhas.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. “Divagação sobre as ilhas”. In: Passeios na ilha. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p.15-19)
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