Durante o século XX, o Brasil se consolidou como um país de famílias numerosas e gente jovem em profusão, com maternidades sempre cheias e abundância de braços para abastecer o mercado de trabalho, que floresceu de mãos dadas com um acelerado processo de urbanização. Mas a passagem do tempo vem chacoalhando os pilares demográficos e trazendo ao país um cenário de profundas transformações, tal qual ocorre nas nações mais desenvolvidas. A constante diminuição dos nascimentos, aliada ao avanço dos idosos, confere à sociedade uma nova face e planta complexos desafios no horizonte. O primeiro deles, impensável meio século atrás, é como perseguir a prosperidade quando a população cresce cada vez mais vagarosamente e caminha para o encolhimento no médio prazo, segundo mostra o recém-divulgado Censo, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O tão aguardado levantamento, que veio à luz com dois anos de atraso, indica que o país atingiu a marca de 203,1 milhões de habitantes, apenas 12 milhões a mais do que na última aferição, em 2010. O que mais chama a atenção é o lento ritmo de expansão do contingente — 0,52% ao ano em uma década, um recorde negativo. Desde 1872, data da pioneira pesquisa censitária no Brasil, ainda na era imperial, até os dias de hoje, nunca a velocidade de aumento populacional havia sido tão arrastada. Os números causaram espanto aos especialistas — projeções estimavam mais 10 milhões de pessoas além da atual contagem. “O país está envelhecendo mais rapidamente do que se sabia e, para embalar sua economia, precisará registrar ganhos de produtividade, destravando freios ao crescimento e investindo em educação”, diz o demógrafo José Eustáquio Alves.
Que uma transição demográfica está em curso acelerado não há dúvida. Mas os estudiosos lançam sobre as estatísticas saídas do forno do IBGE um ponto de interrogação quanto a sua precisão. Essa foi, de fato, uma rodada cercada de fatos atípicos, pelo menos 1 milhão se recusaram a receber os funcionários do instituto. Mesmo que esse conjunto de fatores tenha influenciado o resultado final (alguns demógrafos sérios calculam a população em 207 milhões, 2% a mais que o divulgado), há unanimidade sobre a direção para a qual o Brasil anda: é uma nação que, inevitavelmente, logo percorrerá a trilha da redução populacional.
Historicamente, a população só fazia engordar até chegar ao ápice, nos anos de 1950. A partir daí, foi gradativamente perdendo impulso. O movimento é, em parte, um retrato de mudanças relevantes na sociedade, como o adiamento dos casamentos e o maciço ingresso das mulheres no mercado de trabalho, o que se refletiu na queda do número de filhos.
Questões conjunturais também contribuíram para as transformações, entre elas o quadro de baixo crescimento econômico — outro desestímulo à maternidade e um empurrão à emigração. Na última década, pulou de 1,9 milhão para 4,2 milhões o número de brasileiros vivendo fora, mais uma marca inédita. “Também o zika vírus e a pandemia derrubaram a natalidade e fizeram a mortalidade subir”, observa José Eustáquio.
Com tudo isso, a bem-vinda janela do bônus demográfico, que se abre quando o número de pessoas em idade ativa supera o de crianças e idosos, deve se fechar por volta de 2035, uma década antes do esperado. Nenhum país conta para sempre com superavit de jovens, mas o problema no Brasil é que eles minguaram sem que a economia tenha se beneficiado como poderia. Nação mais envelhecida do planeta, o Japão, por exemplo, escalou a um patamar de renda alto antes de acumular cabeças brancas. “Aqui, estamos envelhecendo antes de ficarmos ricos, mas ainda temos pela frente uns dez anos de bônus demográfico, e eles precisam ser bem aproveitados”, afirma o economista Maílson da Nóbrega.
A equação para isso envolve a superação de velhos gargalos, como desemperrar a burocracia, desenrolar o sistema tributário, investir para valer em infraestrutura e dar graúdos estímulos à inovação. Em paralelo, é mandatório canalizar esforços para prover boa educação, trilha conhecida para alcançar os tais ganhos de produtividade, fazendo mais com menos gente — esse um mantra dos tempos atuais já vastamente abraçado pelos envelhecidos países da OCDE, o grupo dos mais desenvolvidos.
O panorama agora traçado pelo Censo enfatiza o sentido de urgência de tais medidas. Pela primeira vez, oito entre os vinte municípios mais populosos retrocederam em habitantes. Ao todo, 864 cidades devem perder população — um tremendo vespeiro, uma vez que a distribuição de verbas federais é proporcional ao número de residentes.
Além do envelhecimento de suas pirâmides etárias, essas cidades vêm registrando pouco dinamismo na economia, com fuga de empresas para regiões mais efervescentes. “O que mantém a população em determinado lugar é a possibilidade de se inserir na cadeia produtiva. Do contrário, há migração”, afirma o demógrafo Roberto Carmo, da Unicamp. O levantamento do IBGE também sinaliza para transformações que repercutem no campo da sociologia: há 34% mais lares onde vive uma única pessoa, reflexo do adiamento nos casamentos e do aumento da longevidade “Preferi me dedicar à carreira a casar cedo”, relata a cabeleireira Paloma Malta, de São Paulo.
O quadro pintado pelo IBGE não destoa da parcela mais abastada do planeta. Entre os mais ricos, como os Estados Unidos e países da União Europeia, a fecundidade média é de 1,6 filho por mulher (versus 1,7 no Brasil) — menor, portanto, do que a taxa de reposição, de 2,1 filhos por casal, necessária para evitar o declínio populacional. O escasseamento de nascimentos em contraste ao volume de idosos já trazem consequências, entre elas o estrangulamento dos sistemas previdenciários e a falta de cérebros para exercer certas funções, o que nações como Canadá e também os Estados Unidos amenizam com a atração de estrangeiros. Outra estratégia é fornecer vantagens para que as pessoas sigam trabalhando. “Países que não estão se mexendo para conter a queda populacional já enfrentam estagnação, como é o caso do Japão”, lembra a economista Melissa Kearney, da Universidade de Maryland.
Em tempos não tão remotos assim, o que assombrava o universo da demografia era a superpopulação da Terra, que teve no reverendo e economista britânico Thomas Malthus (1776-1834) seu maior catastrofista. É dele a teoria de que seria impossível alimentar tantas bocas numa época em que a produção de comida não acompanhava a multiplicação de indivíduos. Mas aí entrou em cena a capacidade inovadora, proporcionando avanços tecnológicos notáveis e ganhos de produtividade, sobretudo dos celeiros alimentares — e assim a fome não grassou. Agora, debruçada sobre uma questão de sinal inverso, novamente a espécie precisa exercer sua extraordinária inteligência para saltar obstáculos, podendo até se beneficiar da situação. “Com menos pessoas, dá para investir mais na saúde e na educação de cada um, e o meio ambiente é naturalmente menos castigado”, diz José Eustáquio. É um bom caminho, que põe a engenhosidade humana à prova.
(Ernesto Neves. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/osdesafios-impostos-pelo-crescimento-populacional-em-ritmo-maislento/. Acesso em: 03/06/2023. Fragmento. Adaptado.)