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Um quadro
(Sérgio Porto)
Até bem pouco caminhava de um lado para o outro. Depois
sentou-se algum tempo e deixou-se ficar, respirando fundo a cada
instante, em pleno estado de expectativa. Mas já agora levantase, vai ao bar e começa a preparar uma bebida. Mede a dose
(forte) e atravessa a sala em direção à cozinha, em busca de gelo
e água.
Faz tudo isso automaticamente, sem pensar. E volta a sentar-se
no sofá da sala; desta vez de pernas cruzadas e copo na mão.
Sorve um gole grande e desce-lhe pelo corpo uma dormência boa,
uma quase carícia.
Nervoso? Não, não está nervoso. Apenas – é claro – este não é
um momento qualquer.
Ao segundo copo está, por assim dizer, ouvindo o silêncio. Há
barulhos que aumentam a quietude da noite: piano bem longe,
assovio de alguém que passa, buzina numa esquina distante,
latido de cachorro no morro, pio de ave, o mar.
As luzes estão apagadas e a claridade que vem de fora projeta-se
contra a parede e ilumina o quadro.
É um velho quadro a óleo, representando um homem de meiaidade, com barbas grisalhas e basto bigode. Está há tanto tempo pendurado na parede que raramente repara nele. Um dia – faz
muitos anos – perguntou quem era. Disseram-lhe que era o
fundador da família, um antepassado perdido no tempo, que um
pintor da época retratara sabe lá Deus por quantos patacos.
“Ele é o pai do pai do pai do pai do pai de meu pai”, pensou.
Por que, na partilha dos bens, sobrara-lhe o quadro é coisa que
não sabe explicar. Quando os irmãos se separaram e deixaram a
casa que seria demolida, talvez tivesse apanhado o “velho dos
bigodes” (que é como o chamavam os meninos) e metido em um
dos caixotes.
Agora estava ali a fazer-lhe companhia, espiando-o com seus
olhos mansos em nada diferentes dos de seus semelhantes,
outros avós, de outras famílias, em outras molduras.
Seu olhar calmo, de uma meiguice que os homens de hoje
esqueceram de conservar, quanta coisa já contemplou? Quantos
dramas, comédias, gestos, atitudes, festas, velórios? Quantas
famílias de sua família?
Por certo viu moças que feneceram, homens que já não são mais.
Assistiu impávido a batizados e casamentos, beijos furtivos,
formaturas. Na sua longa experiência de emoldurado
provavelmente pouco se comoveu com as comemorações e os
lamentos, fracassos ou júbilos dos que transitaram, através dos
tempos, frente às muitas paredes em que o colocaram.
Em 1850 morava numa fazenda, casa do bisavô. Depois, ao findar
o século, noutra fazenda, de terras menos pródigas, foi
testemunha muda e permanente de um lento caso de morte.
“Meu avô”, pensou o que esperava, dando mais um gole na
bebida. Será que pressentira a chegada da morte? A saúde do
velho esvaindo-se, apagando-se lentamente, como um chio. As
intermináveis noites de apreensão, a tosse quebrando o silêncio,
angustiando os que esperavam. Depois não foi preciso esperar
mais. Depois mais nada.
Mais nada ou tudo outra vez, que um dos filhos levou consigo o
“velho dos bigodes” para novas contemplações; de outras paredes
para outros descendentes.
O telefone toca violentamente. O que aguarda a notícia salta para
ele e com voz rouca atende:
- Seu filho já nasceu – informa a voz do outro lado. E acrescenta:
- Tudo vai bem.
O homem volta sereno para o bar. Enche novamente o copo,
agora a título de comemoração. Levanta-o à altura do peito, mas
na hora de beber lembra-se do velho do quadro e saúda-o sem
dizer qualquer palavra.
Não fosse o nervosismo de há pouco e também os uísques que
tomara, seria capaz de jurar que o “velho dos bigodes” sorrira.
Manchete, 23/01/1957.
PORTO, Sérgio. O homem ao lado: crônicas / Sérgio Porto 1ª
edição. – São Paulo: Companhia das Letras, 2014.