Texto 02
Era uma vez a menina que não era bela nem
recatada e muito menos do lar
Por Karen Curi
Sexta-feira à noite. Numa mesa de bar, três amigas
entornavam as suas perturbações em taças de vinho
sobre a máxima, tão mínima, da "bela, recatada e do
lar”.
— Já passamos dos trinta, estamos beirando os 40, se
a gente ficar uma semana sem treinar a calça não
fecha. Temos manchas de sol, rugas em volta dos
olhos, celulite, estrias. Fazemos sexo no primeiro
encontro, saímos para beber sem hora pra voltar.
Trabalhamos feito burro de carga: em casa, no escritório, fins de semana e feriados. Gente, nós somos
a antítese desse tipo de mulher. Eu confesso aqui,
tenho até uma ponta de inveja. (...)
O circo pegou fogo. Uma bateu no peito para enaltecer
a independência financeira conquistada com pós-graduação e mestrado. A outra disse que não precisava
de um marido rico para ser feliz, e que até se orgulhava
de sua vasta experiência amorosa. Aquelas mulheres
se encontravam na encruzilhada da realidade com a
expectativa. O tempo passou e elas não haviam se
transformado em princesas.
Mas tornar-se princesa era algo realmente desejado?
Seria a salvação de uma existência pagã? Chegaram à
conclusão de que tinham deixado para trás alguns
sonhos e hormônios. Carregavam uns quilos a mais, o
colesterol alto e uma cartela de Rivotril. Ok. Mas isso
não tornava aquelas três mulheres feias ou menos
descentes. Muito pelo contrário.
Pior do que a taxa glicêmica, a alta do dólar, o preço da
gasolina, a declaração do imposto de renda, o novo
treino de glúteo, a mamografia que precisou ser
repetida e o ex-noivo que se casou com uma menina
de 20 anos, bem pior do que as rotineiras desgraças de
cada dia era a constatação que a sociedade ainda exigia
que elas fossem “belas, recatadas e do lar”, tal como as
moças do período Anglo-saxão. Pelo amor de Deus e
sua divina misericórdia pelas mulheres pós-modernas!
Aquelas almas, encharcadas de desalento, estavam
tomadas pela ideia de que o tempo continuava sendo
o pior inimigo de uma mulher; mais cruel que o chefe,
mais sádico que o ex-noivo e mais subversivo que a
vizinha do apartamento de baixo. Como poderiam ter
conquistado o mundo e ainda serem diminuídas ao
estereótipo da princesa do castelo cor-de-rosa? O
tempo havia percorrido seus pensamentos e corpos,
tornaram-se mulheres maduras, seguras,
independentes, suficientes, fortes. Como é possível
insinuar para que caibam em modelagens frágeis,
plásticas, consentidas, próprias às senhoritas de
outros carnavais?
Só porque tinham lá as suas imperfeições estéticas,
viviam as suas experiências afetivas e trabalhavam
como gente grande, isso não poderia deixá-las fora do
balaio das mulheres desejadas. O tempo, inimigo da lei
da gravidade, não poderia — ainda por cima — baixá-las junto ao pó dos seres indesejáveis, inapropriados e
imorais. Caramba! Seria muita injúria!
Apesar dos pesares, restara um gole de autoestima no
fundo da garrafa. Um bafo com teor alcoólico
acentuado soprava o raciocínio dos ébrios. Uma delas,
no auge da sabedoria que só o vinho é capaz de prover,
encerrou a quarta garrafa com a conclusão mais
conveniente possível:
— Prefiro ser feliz do meu jeito, do que ser triste
tentando ser uma princesa que eu não sou!
Chegaram à conclusão de que eram tão belas quanto à
moça da foto. Entretanto, orgulhosamente
espalhafatosas, presumidas empregadoras e muitas
outras coisas mais.
E assim foram felizes no para sempre daquele
momento. Fim.
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