Contei por quase toda a minha vida uma história sobre
o meu nascimento: eu tenho um leve afundamento craniano
na nuca. Lembrava-me bem de uma vez minha mãe comentar que eu nasci a fórceps, o qual me causou essa pequena
deformação. Logo criei toda uma teoria sobre ter vindo ao
mundo puxado por uma ferramenta, como aquelas que ficam
nos parques e shoppings em que você tenta pegar um bicho
de pelúcia com um gancho de ferro, geralmente falhando
repetidas vezes até assumir sua falta de habilidade.
Tive, ao longo da vida, diversas reflexões sobre isso.
Geralmente me via sendo colhido como um rabanete, em
outros momentos pensava muito sobre como esse afundamento era o que eu tinha de mais íntimo, por ser minha
primeira interação com o mundo: antes mesmo do látex das
luvas da equipe médica me tocar, eu já ganhava uma marca
para a vida toda, fruto desse contato inaugural. Raramente
corto o cabelo muito baixo, porque o vale fica mais evidente,
então, é muito provável que a maioria das pessoas que me
conhece nunca tenha percebido.
Eu me apeguei a esse evento e o trazia junto de mim
como uma história intrigante sobre vir ao mundo já dentro de
um tipo de violência, como se minha vida toda fosse constantemente aquela sensação estranha de acordar subitamente. Num domingo qualquer, vindo de uma fase em que
queria conhecer mais a minha história, puxei o assunto do
meu nascimento com minha mãe e quis saber sobre o
fórceps. Minha mãe, muito naturalmente, me explicou que isso
nunca aconteceu, que eu nasci em total tranquilidade – tanto que meu pai resolveu parar e fumar um cigarro a mais antes
de subir ao andar da maternidade e nesse meio-tempo eu já
estava fora do ventre de minha mãe, enrolado numa mantinha. Quem teria nascido a fórceps era a minha irmã e provavelmente eu ouvi essa conversa algum dia da minha infância
e minha cabeça a transformaria numa história em que eu era
o protagonista. Mas o que eu quero falar é sobre a minha
reação imediata diante da desfeita dessa crença particular:
eu, surpreendido, quis negar, quis falar que eu tinha certeza
de que foi do jeito que eu contava para mim mesmo, ainda
que fosse totalmente ilógico eu querer saber mais do que
minha mãe sobre o assunto.
(Ricardo Terto. Quem é essa gente toda aqui? Todavia, 2021. Adaptado)