A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra,
vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a
diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência
e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se
possível, a mesma língua para todo mundo.
Para a Unesco, 2019 foi o ano internacional das línguas
indígenas. Todos nós sabemos que a cada ano ou a cada
semestre uma dessas línguas maternas, um desses idiomas
originais de pequenos grupos que estão na periferia da
humanidade, é deletada. Sobram algumas, de preferência
aquelas que interessam às corporações para administrar a coisa
toda, o desenvolvimento sustentável.
O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas
paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo
regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de
perspectiva política que não conseguimos nos erguer e respirar,
ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as
comunidades nas suas ecologias. Para citar o Boaventura de
Sousa Santos, a ecologia dos saberes deveria também integrar
nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o
lugar em que queremos viver, nossa experiência como
comunidade. Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de
humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo
tomou o lugar daquilo que antes era cidadania.
Ailton Krenak
(Extraído e adaptado de Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia
das Letras, 2019)