Para que ninguém a quisesse
Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se
pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os
sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, da gaveta tirou todas as joias. E vendo que, ainda assim, um
ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva
como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos,
mimetizada com os móveis e as sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mais do desejo inflamado
que tivera por ela.
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido em uma
gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a
cômoda.
(Marina Colasanti. http:i/www,avozdapoesia.com.br/obras _ler.php?obra_id=19263. Acesso em 09/03/18.)