Rita Terezinha Schmidt
(03 de janeiro de 2024)
Assim como Clarice sempre resistiu a
qualquer tentativa de enquadramento e
manifestava publicamente sua falta de interesse
em produzir “literatura” – termo ao qual atribuía o
peso de uma instituição, um fardo que nunca
cogitou carregar porque se considerava uma
amadora, e não uma “profissional” –, também
nunca mencionou o termo “feminista”, seja na sua
vida pública, seja na sua produção ficcional.
Talvez porque na época circulava o clichê de que
feministas eram mulheres mal-amadas e
desejavam se igualar aos homens, noções
distorcidas e disseminadas por segmentos
conservadores que não admitiam a agenda da
luta por direitos, foco das reivindicações dos
movimentos de mulheres que começaram a
ganhar vulto a partir da década de 1950.
Nesse período e nas décadas seguintes, o
impacto da obra O segundo sexo (1949), de
Simone de Beauvoir, foi explosivo,
particularmente pela afirmação de que a mulher
“feminina”, nos termos do binarismo de gênero na
cultura patriarcal, é caracterizada pela
passividade e que é nessa condição que ela se
torna um ser para o outro, uma alteridade
institucionalizada.
Com vivências em países europeus e nos
Estados Unidos, Clarice certamente tomou
conhecimento das passeatas de mulheres que
ganhavam, na época, ampla cobertura nos
jornais e em noticiários na televisão. Também foi
leitora de escritoras inglesas como Emily Brontë,
Katherine Mansfield e Virginia Woolf, que
abordaram questões relativas à condição
feminina, definida como “o problema que não tem
nome” por Betty Friedan, em seu A mística
feminina (1963). Woolf, além de inovadora na
prosa de ficção, em Um teto todo seu (1929) foi
pioneira na denúncia da opressão econômica,
intelectual e criativa das mulheres: ao tentar fazer
uma pesquisa sobre o tema mulher e ficção na
biblioteca de Oxbridge (nome fictício para as
duas mais tradicionais universidades da
Inglaterra, Cambridge e Oxford), teve sua entrada
barrada por não estar acompanhada de um
homem nem levar uma carta de apresentação.
Ao retornar devidamente acompanhada, levantou
informações que referendaram o que observara
de forma empírica, isto é, que a tradição literária era pautada, exclusivamente, na genealogia
pais/filhos.
Em tempos de questionamentos e de
transformações sociais, não surpreende que na
singularidade composicional de suas obras
Clarice articulasse um feminismo latente de outra
genealogia, a de mãe/filhas, presente nos
alinhamentos entre narradora, autora implícita e
personagens femininas, tramados em diferentes
graus de cumplicidade. Trata-se de uma teia na
qual a relação da narradora com suas
personagens conflui em fios de discurso/fios de
pensamento que deslizam de uma obra a outra,
produzindo ressonâncias e superposições na
construção de elos intersubjetivos. Se o fio, no
mito de Ariadne, é símbolo de salvação de um
enredamento mortal, na obra de Clarice seu
arquétipo tece um imaginário que fecunda
subjetividades/identificações declinadas pelo
pertencimento feminino e que entrelaçam vida e
ficção numa economia de afetos que não deixa
de evocar o lema feminista de nossa época, “o
pessoal é político”.
Talvez nenhuma outra escritora brasileira,
ao longo de sua obra, tenha sido capaz de captar
e sustentar com perspicácia e constância a
problemática de personagens femininas,
circunscritas por injunções de uma estrutura
patriarcal que contamina o espaço familiar. Suas
trajetórias oscilam em movimentos de resistência,
de submissão e de transgressão, num
aprendizado doloroso de autoconsciência e de
percepção do mundo à sua volta. Isso não
significa dizer que Clarice reduzia a literatura ao
compromisso verossímil de um realismo ingênuo,
mas, sim, que seu viés feminista estava presente
na construção das experiências vividas por suas
personagens e produzia, de forma subjacente,
uma crítica social pertinente a seu tempo e lugar.
A pergunta “quem sou eu?”, implícita ou
explícita, que percorre os fios de sua teia ganha
expressão em Joana, Ana, Lucrécia, Laura,
Virgínia, G. H., Ângela, personagens que figuram
a condição da mulher brasileira de classe média
dos anos 1940 a 1960 – condição essa que
transcende limites geográficos e temporais. Em
diferentes graus de sensibilidade quanto à
realidade, todas essas personagens passam por
sensações de vazio e de impotência, um
desconforto com um cotidiano regulado por rituais
domésticos e padrões preestabelecidos que dão
um falso equilíbrio às suas existências e
distorcem as percepções de si próprias e da vida.
Por isso, em momentos de devaneios, vertigens
ou revelações, todas são assaltadas por certo
mal-estar, um desejo confuso, pela falta de algo
que não sabem definir o que é, mas que sentem ser necessário descobrir. Esse momento é o das
horas perigosas, quando algo reprimido emerge à
superfície para romper a normalidade das
aparências e desestabilizar, mesmo que
momentaneamente, a estrutura engessada de
suas vidas. [...]
As obras de Clarice são declinadas no
feminino sob um viés feminista, não somente pelo
protagonismo de suas personagens mulheres e
pelos laços de cumplicidade entre elas e a
narradora, mas pelo agenciamento da escritora
que intervém, de forma eloquente, no sistema de
representação da cultura patriarcal. Não por
acaso, o último fio de sua teia culmina no caudal
de Água viva, pura imersão na energia originária
de um feminino cósmico que vem “das trevas de
um passado remoto”. Assim, tecida por muitos
fios, a poética feminista de Clarice inscreve seu
posicionamento social e político no contexto da
cultura de seu tempo e projeta uma ética da
diferença, inscrita no potencial criativo e
subversivo das mulheres, que se reinventam para
poder se imaginar outras, e umas com as outras,
na literatura e na vida.
Texto publicado originalmente na Cult 264, de
dezembro de 2020.
A autora do texto é doutora em literatura, professora
titular de literatura e convidada do Programa de PósGraduação em Letras da UFRGS. Adaptado de
https://revistacult.uol.com.br/home/cult-301-claricelispector/ , acesso em 21 de mar de 2024.