LÍNGUAS MUDAM
Por Sírio Possenti. Adaptado de:
Acesso em 13 jan 2017.
Que as línguas mudam é um fato indiscutível. O que
interessa aos estudiosos é verificar o que muda, em que
lugares uma língua muda, a velocidade e as razões da
mudança.
Desde a década de 1960, um fator foi associado
sistematicamente à mudança: a variação. Isso quer dizer
que, antes que haja mudança de uma forma a outra, há um
período de variação, quando as duas (ou mais) ocorrem –
inicialmente em espaços ou com falantes diferentes. Aos
poucos, a forma nova vai sendo empregada por todos;
depois, a antiga desaparece. [...].
Os sociolinguistas, eventualmente, fazem testes para
verificar se um caso de variação é ou não candidato à
mudança. O teste simula a passagem do tempo verificando
qual é a forma adotada pelos falantes mais velhos e pelos
mais jovens. Por exemplo: se os mais velhos escrevem ou
dizem sistematicamente “para fazer uma tese é preciso
que...” e os mais jovens, “para se fazer uma tese...”, este é
um indício de que o infinitivo sem sujeito, nesta posição,
tende a desaparecer com o desaparecimento dos falantes
mais idosos (e “para se fazer” será a forma única, pelo
menos durante um tempo).
De vez em quando, há discussões sobre certos casos.
Dois exemplos: o pronome ‘cujo’ e a segunda pessoa do
plural dos verbos (‘jogai’ etc.). Minha avaliação (bastante
informal) é que ‘cujo’ desapareceu. O que quer dizer
“desapareceu”? Que não se emprega mais? Não! Quer
dizer que não é mais de emprego corrente; só aparece em
algumas circunstâncias – tipicamente, em textos muito
formais (em geral de autores idosos). E, claro, em textos
antigos.
Que apareça em textos antigos é uma evidência de que a
forma era / foi empregada. Que apareça cada vez menos é
um indício de que tende a desaparecer. Com um detalhe:
desaparecer não quer dizer não aparecer nunca mais em
lugar nenhum. Quer dizer não ser de uso corrente. Para
fazer uma comparação, ‘cujo’ é como a gravata borboleta:
só usamos esse item em certas cerimônias, ou seu uso é
uma idiossincrasia [...].
Outro caso é a segunda pessoa do plural, em qualquer
tempo ou modo. Recentemente, um colunista defendeu a
tese de que a forma está viva. Seu argumento: aparece em
cartazes de torcedores em estádios de futebol,
especialmente do Corinthians, no apelo “jogai por
nós”. Mesmo que este seja um fato, a conclusão é fraca. A
forma é inspirada numa ladainha de Nossa Senhora, toda
muito solene, muito mais do que formal. E é bem antiga,
traduzida do latim. [...] A cada invocação, os fiéis
respondem “rogai por nós”. “Jogai por nós” é uma fórmula
inspirada em outra fórmula, típica desta oração.
Para que se possa sustentar que a segunda pessoa do
plural não desapareceu, seria necessário que seu uso
fosse regular. Que, por exemplo, os corintianos também
gritassem “Recuai, Wendel”, “Não erreis estas bolas fáceis,
Vagner Love”, “Tite, fazei Malcolm treinar finalizações” e, quando chateados, gritassem “Como sois burro!”. Espero
que nenhum colunista sustente que isso ocorre...
[...] O caso “jogai” me faz lembrar outro, da mesma
natureza, de certa forma. Se há um fato consensual em
português (do Brasil) é que não se diz naturalmente “ele
o/a viu, vou fazê-la sair”. Estas formas pronominais
objetivas diretas de terceira pessoa são verdadeiros
arcaísmos. Só são parcialmente aprendidas na escola. Os
alunos começam a empregá-las depois de alguns anos,
um pouco por pressão, um pouco porque se dão conta de
que cabem em textos mais monitorados. Mas essas
formas nunca aparecem na fala deles (e são muitíssimo
raras também na fala de pessoas cultas, como as que
aparecem em debates na TV).
Curiosamente, uma das formas de manifestar chateação,
com perdão da expressão, é “p*** que o pariu”! Aqui, o
pronome oblíquo aparece! Entretanto, ninguém vai dizer
que esse é um argumento para sustentar que o pronome
oblíquo está vivo. Se disser...
Sírio Possenti
Departamento de Linguística - Universidade Estadual de Campinas