POR QUE NÃO SEPARAR ARTISTA E OBRA?
São numerosos os casos recentes onde
vemos toda uma obra artística já consagrada sendo
colocada sob julgamento público em decorrência de
falhas, erros, abusos diversos e até mesmo de crimes
atrozes cometidos por seus artistas. São músicos,
cineastas, atores, comediantes, artistas plásticos,
escritores e por aí vai.
Sabemos que o sucesso de uma obra
artística é dado por uma confluência de méritos,
avanços técnicos e estilísticos reconhecidos no
passado e transmitidos no presente. Se aí nos
bastarmos, objetivamente, será possível apreciar um
filme ou admirar uma tela sem que a vida privada de
sua autora ou de seu autor esteja no foco de nossos
sentimentos de espectador. Seríamos, então,
capazes de esquecer, mesmo que por alguns
instantes, as suas contradições pessoais, diriam
algumas pessoas.
Mas, por outro lado, a vitalidade da obra
no tempo, em partes, não seria também resultado
dos modos pelos quais nós ouvimos e aprendemos a
contar as trajetórias pessoais e subjetivas de seus
artistas? Podemos hoje, por exemplo, reler e ampliar
a obra de Machado de Assis olhando para as relações
contraditórias que ele teria vivido enquanto um
homem afrodescendente vivendo e escrevendo no
Brasil do século XIX, fato, até então, silenciado pelo
racismo insistente no mundo das artes. Já a cantora
estadunidense Miley Cyrus aproveitou a
oportunidade de escrever recentemente uma canção
para expressar e expor o drama que vivenciou em
sua mais recente relação amorosa com o ator Liam
Keith Hemsworth. Se assim for, artista e arte se
confundiriam?
O mais recente filme do diretor
estadunidense Todd Field reabre e traz novas pistas
para a questão. Nele, Cate Blanchett interpreta Lydia
Tár, uma regente de orquestra cujo extenso currículo
exibe grandes posições e muitos prêmios.
Poderíamos estar diante de uma trajetória pessoal
narrada como ascendente, coesa, linear e gloriosa:
algo comum nas biografias de grandes gênios. No
entanto, o que acompanhamos, dentro e fora das
salas de concerto, é surpreendente. Passamos a
enxergar Lydia vivendo um processo de erosão
pública e individual quando tem suas possíveis
contradições pessoais expostas por uma série de acontecimentos que também envolvem a sua
carreira. Tár está sendo “cancelada”.
Por falar em música, no início dos anos
1960, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, ao
estudar os mitos Bororo no Brasil, os comparou a
uma grande partitura. Assim como nos mitos, a
música não seria tocada exclusivamente nas notas da
escala, mas, em especial, nos intervalos entre elas.
Para ele, admirador dos compositores de Richard
Wagner e Claude Debussy, uma obra é feita também
de silêncios e pelas sensações contraditórias
provocadas por eles.
Podemos aí incluir os silêncios
biográficos? Como uma música e um mito, uma
biografia pode muito nos contar sobre os contextos
sociais de uma época: padrões, requisitos culturais,
disputas, condições desiguais e opressões. Já se foi
o tempo em que grandes artistas como Machado de
Assis, Cyrus, Wagner e Tár tinham suas biografias
construídas exclusivamente a partir de seus grandes
feitos muito coerentes entre si e com a obra na
totalidade. A biografia se traduziria, assim, como um
monumento que confina a pessoa a um herói público
congelado no tempo e nas ideias. O que vemos hoje,
para além do simples cancelamento nas redes
sociais, é uma atenção maior aos silêncios, isto é, às
hesitações, ambiguidades e contradições abertas nas
vidas dessas personagens públicas. Isso pode tornar
viável o acesso aos seus traços pessoais e coletivos
que podem enriquecer e dar complexidade à obra;
significa conhecê-la melhor por dentro e ao seu redor.
Assim como a obra, uma trajetória
pessoal também poderá ser um instrumento do
conhecimento histórico. Como costuma dizer a
antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, é
importante lançar questões do presente para
interrogar o passado. Conhecer os silêncios
biográficos implica também em indagar os modos
pelos quais nós seguimos compreendendo,
atualizando e executando a obra de arte. Isso
também faz parte do prazer estético, diria LéviStrauss. Penso que Lydia Tár também concordaria,
pelo menos, até a primeira parte do filme.
Finalmente, as trajetórias também se
tornam peças públicas, portanto, objeto da
construção do conhecimento crítico, diverso e mais
inclusivo. Misturar artista e obra poderá, então,
fornecer meios maravilhosamente imprevistos —
assim como podemos ver em Tár — não para
simplesmente cobrir as lacunas nas histórias, mas
assumi-las, habitá-las e, com elas, pensar
coletivamente sobre os nossos erros e ambiguidades, no passado e no presente, dentro e fora das molduras
impostas a uma obra de arte.
(Autor: Paulo Augusto Franco de Alcântara.
Disponível em
https://gamarevista.uol.com.br/artigo/por-que-naoseparar-artista-e-obra/)