Leia um trecho do texto “Entre a orquídea e o presépio”, de
Carlos Drummond de Andrade, para responder à questão.
A moça ficou noiva do primo — foi há tanto tempo. Casamento, depois da festa de igreja, era a maior festa na cidade
casmurra, de ferro e tédio. O noivo seguia para a casa da
noiva, à frente de um cortejo. Cavalheiros e damas, aos pares, de braço dado, em fila, subindo e descendo, descendo e
subindo ruas ladeirentas. Meninos na retaguarda, é claro, naquele tempo criança não tinha vez. Solenidade de procissão,
sem padre e cantoria. Janelas ficavam mais abertas para espiar. Só uma casa se mantinha rigorosamente alheia, como
vazia. É que morava lá a antiga namorada do noivo — o gênio dos dois não combinava, tinham chegado a compromisso,
logo desfeito.
Murmurava-se que, à passagem do cortejo em frente àquela casa, o noivo seria agravado. Não houve nada:
silêncio, portas e janelas cerradas, apenas. E o cortejo seguia
brilhante, levando o noivo filho de “coronel” fazendeiro, gente
de muita circunstância, rumo à casa do doutor juiz, gente de
igual altura. A casa era “o sobrado”, assim a chamavam por
sua imponência de massa e requinte: escadaria de pedra, em
dois lanços, amplo frontispício1
abrindo em sacadas, sob a
cimalha2
a estatueta de louça-da-china3
— espetáculo.
E houve o casamento e houve o jantar comemorativo e
houve o baile, com a quadrilha fazendo ressoar no soalho
de tábuas a música dos tacões dos homens, dos saltos das
mulheres.
A noiva era uma risonha morena saudável, o noivo um
passional tímido, amavam-se. E lá se foram para a fazenda
longe, fim do mundo ou quase, onde as notícias demoravam
uma, duas semanas para chegar. Que dia sai o cargueiro4
?
Que dia ele volta? Voltava com revistas, cartas, moldes de
roupas, açúcar, fósforos, ar da cidade, vento do mundo.
Começaram a nascer as meninas. Dava muita menina
naquele casal. Como educá-las? A dona de casa virou professora, virou uma escola inteira, se preciso virava universidade.
(Elenco de cronistas modernos. José Olympio Editora. Adaptado)
1. frontispício: fachada principal.
2. cimalha: parte mais alta das paredes.
3. louça-da-china: porcelana.
4. cargueiro: pessoa que conduz animais de carga.