Questões de Concurso
Comentadas sobre uso dos dois-pontos em português
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O tempo amarrota a lembrança e subverte a ordem.
Parecia muito pequeno o ideal de meu pai, naquele tempo, lá. A escola, onde me matriculou também na caixa escolar – para ter direito a uniforme e merenda –, devia me ensinar a ler, escrever e a fazer conta de cabeça. O resto, dizia ele, é só ter gratidão, e isso se aprende copiando exemplos.
Difícil não conferir razão a meu pai em seus momentos de anjo. Ele pendia a cabeça para a esquerda, como se escutando o coração, e falava sem labirintos. Dizia frases claras, acordando sorrisos e caminhos. Parecia querer argumentar sem ele mesmo ter certeza, tornando assim as palavras cuidadosas.
Um pesar estrangeiro andou atordoando meu pouco entendimento. Ir para a escola era abandonar as brincadeiras sob a sombra antiga da mangueira; era renunciar o debaixo da mesa resmungando mentiras com o silêncio; era não mais vistoriar o atrás da casa buscando novas surpresas e outros convites.
Contrapondo-se a essas perdas, havia a vontade de desamarrar os nós, entrar em acordo com o desconhecido, abrir o caderno limpo e batizar as folhas com a sabedoria da professora, diminuir o tamanho do mistério, abrir portas para receber novas lições, destramelar as janelas e espiar mais longe. Tudo isso me encantava.
Por definição minha, perseguindo respostas, eu desconfiava ser a escola um lugar de muito respeito. Era preciso ter as unhas limpas e aparadas, cabelo penteado, caderno caprichado dentro do embornal, uniforme lavado – calça azul-marinho e camisa de fustão branco – e passado com ferro de brasa, goma de polvilho rala na gola, para não arranhar o pescoço.
A professora, quando os alunos ainda na fila e do lado de fora da sala, lia a gente como se fosse um livro. E mãe nenhuma gostaria de ser chamada de desmazelada pela mulher mais respeitada do lugar. [...]
Eu carregava comigo um chocalho de cascavel amarrado em um cordão encardido, preso no pescoço. Simpatia de minha mãe para eu não urinar na cama. A gola engomada de minha camisa não escondia essa sentença peçonhenta. Eu vivia como a canção: “camisa aberta ao peito, pés descalços e braços nus”. [...]
Eu corria pelos matos cheio de carrapichos e carrapatos, saltando córrego, me equilibrando em pinguelas, descobrindo frutas maduras, suspeitando ninhos e passarinhos. Trazia, ainda, uma vergonha de todo mundo, mas deixar sumir na “campina” o chocalho, simpatia de mãe, seria brincar com sua fé. Então eu andava devagarinho, pisando certo,aprumado e manso, para evitar o chiquechique do chocalho. Cascavel anda em dupla, me diziam, e o chocalho serve para chamar o outro.
[...]
Vi meu pai cochichar com minha mãe, e de início enredei ser carinho, como o de Dr. Júlio Leitão e Dona Pequenina. Abri bem os ouvidos, pois os olhos não dava. Ele dizia ser o Dr. Jair, seu patrão, como uma cobra: mordia e soprava. Eu balançava a cabeça, com força, de vez em quando, acordando a simpatia de minha mãe. Vontade de chamar outra cascavel só para ver uma cobra mordendo e soprando, se frio ou quente seu bafo.
Dr. Jair visitou minha mãe, uma noite [...]. Não saí de perto dele nem tirei os olhos de sua boca, esperando o homem morder e soprar. Ele falou foi muito de riqueza e de como contava com o trabalho de meu pai, seu melhor empregado, capaz de carregar água em peneira. Perdi meu tempo.
BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS.Ler, escrever e fazer conta de cabeça.São Paulo: Global, 2004.
Vocabulário
destramelar: destrancar
embornal: sacola
peçonhenta: venenosa
Qualquer um pode sofrer com solidão crônica: uma criança de 12 anos que muda de escola; um jovem que, depois de crescer em uma pequena comunidade, sente-se perdido em uma grande cidade; uma executiva que está ocupada demais com sua carreira para manter boas relações com seus familiares e amigos; um idoso que sobreviveu a sua parceira e cuja saúde fraca dificulta fazer visitas.
Nesse trecho, os dois pontos foram utilizados para anunciar uma
INSTRUÇÃO: Leia o texto a seguir para responder a questão.
Educação profissional e a lição que os jovens ensinam ao Brasil
RAFAEL LUCCHESI
O dado de que emprego e profissão desejados lideram a lista de aspirações dos jovens brasileiros revela um novo Brasil em construção. Pesquisa recente publicada pelo Instituto Datafolha indica uma preocupação da juventude com o próprio futuro. Outra pesquisa, Transições da escola para o mercado de trabalho de mulheres e homens jovens no Brasil, da OIT, avalia que os jovens brasileiros são trabalhadores e parte significativa deles tem se esforçado para combinar trabalho e estudo.
Com menos experiência e, em geral, pouca qualificação profissional, eles são os que sofrem primeiro quando o mercado de trabalho piora. Essa maior dificuldade para colocar em prática projetos de vida parece ter ensinado ao Brasil uma lição: é preciso estar mais bem preparado para o mundo do trabalho. O impacto coletivo dessa mudança de percepção pode ser visto também com a nova cara dos estudantes do ensino médio.
A maior chance de conquistar um emprego e um bom salário aumentou o interesse dos estudantes em relação ao ensino técnico de nível médio. Dados do Censo da Educação Básica, analisados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), mostram aumento de 55,3% no número de matrículas nesses cursos, passando de 927.978 em 2008 para 1.441.051 em 2013.
Historicamente, a procura por cursos de formação profissional segue uma lógica anticíclica: a procura cresce mais quando o mercado de trabalho não apresentava bom desempenho. Os trabalhadores buscavam se qualificar para manter ou conseguir novo emprego, ou seja, pela necessidade de elevar/manter a sua empregabilidade.
Na última década, quando foram registrados baixos índices de desemprego no Brasil, essa dinâmica parece ter sido rompida, uma vez que a sociedade brasileira começou a mudar a sua percepção sobre a educação profissional, entendendo que ela pode ser o caminho mais curto para a inserção, com qualidade, no mercado de trabalho.
Em outras palavras, mesmo com o mercado de trabalho ativo, houve expansão significativa da procura por cursos, motivada principalmente pela falta de mão de obra especializada e pela necessidade de atualização tecnológica, além ─ é claro ─ do entendimento de que o trabalho abre a perspectiva da mobilidade social.
O aumento do interesse na educação profissional é importante e aponta que estamos no caminho certo da valorização da educação profissional, mas ainda é pouco se comparado a outras nações.
Países da União Europeia, em 2010, segundo o Centro Europeu para o Desenvolvimento da Educação Profissional, tinham em média 49,9% dos estudantes do ensino secundário também matriculados na educação profissional.
Na Áustria, por exemplo, que registra o índice mais alto, 76,8% dos estudantes do secundário fazem ensino técnico. Finlândia vem em seguida com 69,7% e Alemanha com 51,5%. No Brasil, esse índice alcançou os 7,8% em 2013.
A educação profissional melhora o ambiente de negócios, podendo ser um parâmetro importante para decisão de novos investimentos por empresários. Na perspectiva do trabalhador, a qualificação pode reduzir o risco de desemprego ou, ao menos, reduzir o tempo de permanência fora do mercado de trabalho.
Em um momento de arrefecimento do mercado de trabalho, como o atual, não se pode abrir mão da qualificação de trabalhadores, estejam eles empregados ou não. Essa é, inclusive, uma estratégia para facilitar a retomada de crescimento do país.
Um técnico que será contratado para preencher uma vaga em 2017, por exemplo, deve começar a se qualificar hoje. Os jovens já têm nos dado o exemplo. Agora, cabe à geração madura do Brasil nos governos e setores produtivos seguir seu exemplo e fazer a aposta correta.
LUCCHESI, Rafael. Educação profissional e a lição que os jovens ensinam ao Brasil. Folha de S.Paulo. São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/07/1661561-educacao-profissional-a-licao-que-os-jovens-ensinam-ao-brasil.shtml>
Acesso em: 7 set. 2015 (Adaptação).
INSTRUÇÃO: Leia o trecho a seguir para responder a questão.
“Historicamente, a procura por cursos de formação profissional segue uma lógica anticíclica: a procura cresce mais quando o mercado de trabalho não apresenta bom desempenho.” (4º parágrafo)
No período em análise, fez-se uso dos dois-pontos para
No texto, os dois-pontos
Pergunta fatídica
A fatídica pergunta “O que você quer ser quando crescer?”, feita para crianças já no final da infância ou até antes, é clássica e não muda. Algumas vezes, ela expressa apenas uma brincadeira, para que os pais se orgulhem da resposta que o filho dará e que os pais já sabiam que ele daria. Outras vezes, representa o anseio deles para oferecer ao filho um objetivo maior para a sua vida. E algumas vezes não passa de uma lição moralista a uma criança que resiste aos estudos.
“O que você quer ser quando crescer, menino? Se não for bom aluno, vai ficar desempregado ou ganhar muito pouco!”, já ouvi uma mãe dizer ao filho, desesperada com as notas escolares do garoto.
Mas, se a pergunta não muda, as respostas mudam, e muito. Já houve um tempo em que muitas crianças – garotas principalmente – queriam ser professoras. Meninos e meninas pensavam em ser engenheiros, médicos, advogados, cientistas. Hoje, é difícil ouvir essas respostas.
Quais são as profissões mais atraentes para eles atualmente? Antes de olhar para tal questão, é bom lembrar que as crianças sabem pouco sobre profissões; o que elas dizem querer é apenas um reflexo da percepção que têm a respeito do que o mundo lhes apresenta como importante e de grande reconhecimento ou remuneração.
Ser famoso e cultuado pelas mídias, se destacar na televisão ou internet e receber muito dinheiro parecem ser, hoje, os anseios de muitas delas. Cada vez mais crianças e adolescentes afirmam que, quando crescerem, querem ser blogueiros, modelos, artistas, chefes de cozinha, jogadores de futebol, “vlogueiros” etc. Como você pode perceber, caro leitor, são sempre atividades com grande projeção, mas que pouquíssimas pessoas conseguem alcançar. Só que isso as crianças não têm condição de entender.
Algumas delas acham que já são grandes e têm, na internet, blogs e canais de vídeos, um bom público, composto tanto de outras crianças quanto de adultos. É fácil entender os motivos que levam os mais jovens a serem frequentadores assíduos desses canais: estão isolados, sem espaços públicos para encontrar outras crianças e para brincar. A internet tornou-se, portanto, esse espaço para eles. Mas e quanto aos adultos? Será que estão ali por mera curiosidade? Ainda não sabemos.
O que sabemos é que muitas dessas crianças são tratadas como celebridades, estão bastante expostas e chegam a ganhar presentes de marcas e até dinheiro – algumas vezes, muito dinheiro – com o que chamam de “empresa”. E sempre com o apoio dos pais, é claro, porque precisam de uma grande infraestrutura para fazer o que fazem.
Será que isso é bom para elas? Depende do ponto de vista. Para quem acredita que sucesso, popularidade e ganhos financeiros fazem bem à criança, pode ser positivo. Mas não sabemos até quando. O sucesso e a fama são ondas que vêm e vão. Quando acabarem – e acabam! –, o que será desses meninos e meninas? Estão eles preparados para cair e se levantar? Na minha opinião, não. Se isso já é difícil para os adultos, imagine, caro leitor, para uma criança.
Para quem preza a infância dos filhos e prioriza o aprendizado da convivência deles com outras crianças, nada disso é bom, mesmo que eles digam que querem muito participar e que vários colegas fazem. Qual é o seu ponto de vista?
(Rosely Saião. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/roselysayao/2016/03/1754998-pergunta-fatidica.shtml.)
Instrução: Leia o texto É hora de parar de ir ao zoológico?, publicado na revista online Super em 15/02/2016, e responda à questão.
É hora de parar de ir ao zoológico?
A vontade de ver de perto uma criatura silvestre tem origem antiga. Segundo o biólogo Sérgio Greif, na Idade Moderna, com as Grandes Navegações e com a descoberta de novos continentes, as ricas famílias europeias ficaram interessadas nas espécies exóticas das terras distantes. Para completar suas coleções particulares, "importavam" animais para serem utilizados como demonstração de riqueza e poder.
Uma das afirmações utilizadas para justificar o cativeiro, ainda, naquela época, perdura até hoje. O contato com os animais estreitaria a relação do ser humano com a natureza. Estimulados pelo conhecimento do que nos rodeia, estaríamos mais dispostos a preservar e respeitar a vida selvagem. Sérgio completa: "Não acho realmente que aprendemos a respeitar os animais ou a natureza quando os vemos atrás de grades, reduzidos a uma fração do que os indivíduos de sua espécie representam. Acredito mais que uma visita aos zoológicos nos ensina que podemos subjugar os animais". As amostras que são retiradas da natureza e ficam em cativeiro (ou que já nascem lá) não correspondem à realidade. "O zoológico não é um meio para conhecer um animal em sua essência. A não ser que seja para estudar neuroses de cativeiro", comenta a bióloga Marcela Godoy, professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Para estudar as neuroses de cativeiro, os zoológicos são bons centros de pesquisa: pinguins que tomam antidepressivos no Reino Unido, elefantes confinados que vivem menos da metade do que deveriam viver, graças ao estresse e à falta de exercícios. Marcela relata: "Já tive oportunidade de visitar as áreas restritas ao público nos zoológicos. Essas áreas incluem os animais que, por conveniência, não estão aptos à exposição ao público por estarem doentes, com transtornos gravíssimos, lesões, ou representarem algum tipo de perigo mesmo estando presos". Alguns outros bichos apresentam comportamentos repetitivos e obsessivos, como elefantes que ficam balançando a cabeça ou pássaros que arrancam suas penas.
É claro que existem zoos que tentam, ao máximo, reproduzir as condições naturais do ambiente para que os animais sejam menos afetados, entretanto só isso não é suficiente. "Um zoológico pode melhorar as condições da exposição, substituindo as barras das grades por fossos, aumentando os recintos, praticando o enriquecimento ambiental, ou tomando outras medidas. Isso causará uma melhor impressão aos visitantes, mas para os animais o problema vai ser o mesmo. Continuarão expostos ao público, sem possibilidade de expressar grande parte de seus comportamentos naturais", diz Sérgio.
Apesar de todos os problemas, alguns zoológicos são importantes na preservação e no resgate de espécies. Eles abrigam animais em extinção, realizando diversos programas de reprodução, que incluem congelamento de células e inseminação artificial. Uma parcela também resgata bichos que sofriam maus tratos em circos e parques.
Mas a tecnologia pode contribuir para sanar sua curiosidade em relação à vida animal com documentários, vídeos e fotos. Agora, se você realmente quer ver de perto, pode ir a parques com animais silvestres. A visibilidade vai ser menor - e a adrenalina bem maior -, mas, assim, é possível enxergar a natureza como ela realmente é, o que é bem melhor que só ver o que ela não foi. Se você não estiver interessado, também não tem problema, como finaliza Marcela: "A maior contribuição que os seres humanos podem oferecer aos animais é deixá-los em paz".
Disponível em: < http://super.abril.com.br/ciencia/e-hora-de-parar-de-ir-ao-zoologico>. Acesso em 15 de fev.2016. Texto adaptado
As escolas do futuro
Um grupo de alunos está reunido na sala de aula no meio de um debate caloroso – estão tentando adaptar um carro convencional em um modelo ecológico e econômico. Essa é apenas uma das lições desta escola, chamada Minddrive, no Kansas, EUA. Esta não é uma escola normal, claro. O Minddrive, na verdade, é um reforço escolar para adolescentes que não vão bem no ensino regular. Mas seu método educativo não é tão exótico assim. Ele é todo baseado em jogos epistêmicos, em que os alunos simulam situações cotidianas e pensam em soluções para os problemas que vão surgindo. “Os desafios que as nossas escolas enfrentam hoje são importantes demais para ficarmos isolados. Precisamos preparar os alunos para o mundo real”, diz David Shaffer, professor de pedagogia da Universidade de Wisconsin e chefe do projeto de jogos epistêmicos para uso na educação.
Green School é uma escola em Bali, na Indonésia, onde tudo é natural: as estruturas são de bambu e as salas de aula, abertas, para que o calor e o vento balineses possam entrar. Criada pelo americano John Hardy, ela se baseia na metodologia do educador britânico Alan Wagstaff, que defende uma maneira de ensinar que conecta aspectos racionais, emocionais, físicos e espirituais. Na prática, isso quer dizer que o conhecimento está dividido em temas, e não em matérias. Por exemplo, no ensino fundamental, crianças de sete anos aprendem “padrões de contagem” pulando corda. Um dos objetivos da Green School é que seus alunos saiam de lá prontos para abrir seus próprios negócios – sustentáveis, de preferência. Ainda durante o ensino médio, eles simulam a criação de uma empresa. E muitas acabam saindo do papel.
(André Gravatá, Marcos Ricardo dos Santos. Editado por Karin Hueck. http://super.abril.com.br/comportamento/as-escolas-do-futuro. Adaptado)
TEXTO 2
A ALMA DO CONSUMO
Todos os dias, em algum nível, o consumo atinge nossa vida, modifica nossas relações, gera e rege sentimentos, engendra fantasias, aciona comportamentos, faz sofrer, faz gozar. Às vezes constrangendo-nos em nossas ações no mundo, humilhando e aprisionando, às vezes ampliando nossa imaginação e nossa capacidade de desejar, consumimos e somos consumidos.
O consumo não pertence a todas as épocas nem a todas as civilizações. Somente há pouco tempo histórico é que falamos e entendemos viver numa sociedade de consumo, onde tudo parece adaptar-se à lógica dessa racionalidade, ou seja, à esfera do lucro e do ganho, à ética e à estética das trocas pagas. É uma singularidade histórica. Tornamo-nos Homo consumericus.
Para uma psicologia arquetípica, há deuses em nosso consumo: Afrodite da sedução e do encantamento pela beleza e pelo prazer, Hermes do comércio e da troca intensa, Cronos do devoramento, Plutão da riqueza e da abundância, Criança Divina da novidade, Dioniso do arrebatamento, Narciso ensimesmado, Herói furioso, Eros apaixonado, Pan, Príapo, Puer, quem mais? Que pessoas arquetípicas estão na alma do consumo?
Ao buscarmos pela alma do consumo, lançamo-nos, sempre mais desconfortavelmente, no jogo entre necessidade e supérfluo, entre frívolo e essencial. Não sabemos ao certo onde termina a necessidade, onde começa o supérfluo, onde estão as fronteiras entre consumo de necessidade e consumo de gosto, consumo consciente e consumo de compulsão.
A era hipermoderna se dá sob o signo do excesso e do extremo, que realiza uma “pulsão neofílica”, um prazer pela novidade que se volta constantemente para o presente. O consumo acontece ao lado de outros fenômenos importantes que marcam e que estão no centro do novo tempo histórico: o espetáculo midiático, a comunicação de massa, a individualização extremada, o hipermercado globalizado, a poderosíssima revolução informática, a internet. O consumo cria seus próprios templos: os shopping centers, as novas catedrais das novas e velhas igrejas, e também, a seu modo, a própria rede mundial de computadores.
Consumo: tantos são seus deuses que é preciso evocá-los com cuidado, sem voracidade, para sentirmos sua interioridade, sua alma, sem sermos pegos em sua malha fina.
Consumo de utensílios domésticos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos que liquidificam, batem, moem, trituram, misturam, assam, limpam, fervem, fritam, amassam, amolecem, passam e enceram para nós – sem nossas mãos, sem contato manual. Tocam sons, reproduzem imagens, processam informações. Excesso e profusão de automatismos também funcionando para a era da autonomia.
Organizo e escolho as músicas que quero ouvir – a trilha sonora da minha vida – sem surpresas desagradáveis ou diferentes, simplesmente baixando arquivos de áudio da internet e armazenando-os em meu iPod. A telefonia está em minhas mãos, em qualquer lugar, é móvel, e com ela a impressão de contato por trás da fantasia de conectividade. A comunicação está toda em minhas mãos. Minha correspondência, agora por via eletrônica, está em minhas mãos (ou diante de meus olhos) na hora que desejo ou preciso, em qualquer lugar do planeta. E está em minhas mãos principalmente tudo aquilo que posso comprar pronto (ready-to-go): desde a comida – entregue em casa (delivery), ou então ao acesso rápido de uma corrida de carro (drive-through) – até medicamentos, entretenimento, companhia, sexo e roupas prêt-à-porter.
Percebemos a enorme presença da fantasia de autonomia. E esta autonomia está a serviço da felicidade privada.
O nosso tempo é um tempo de escolhas. A “customização” cada vez mais intensa da maioria dos bens e dos serviços de consumo permite que eu diga como quero meu refrigerante, meu carro, meu jeans, meu computador.
A superindividualização também leva à autonomia, ou vice-versa, e impõe processos de escolha cada vez mais intensos e urgentes: “Os gostos não cessam de individualizar-se”.
O senhor dos Portões (Mr. Gates) abriu as janelas (Windows) de um presente que requer, sim, definições (escolhas) cada vez mais “altas”, mais precisas, mais particularizadas, em quase tudo.
A própria identidade torna-se, no mundo hipermoderno, uma escolha que se dá num campo cada vez mais flexível e fluido de possibilidades: tribos, nações, culturas, subculturas, sexualidades, profissões, idades. Personas to-go. Autonomia: nomear-se a si mesmo.
A lógica consumista parece ser a de um hipernarcisismo. Se existem deuses nas nossas doenças, quem são eles no consumismo?
Comecemos pela necessidade: temos necessidade de quê? De quanto? Quando? Não sabemos mais ao certo, é claro. As medidas enlouqueceram. Movemo-nos agora num mar de necessidades: pseudonecessidades, necessidades artificiais, necessidades básicas, necessidades estrategicamente plantadas pelo marketing, necessidades que não sei se tenho, necessidades futuras, até chegar ao desnecessário, o extraordinário que é demais. A necessidade delira.
A compra é a magia do efêmero. É asa, é brasa. É futuro, promessa, desejo de mudar, intensificação, momento de morte. É o fim da produção, quando as coisas são finalmente absorvidas pela psique.
A compra, ao contrário do que se poderia pensar, dissolve o ego em alma, dissolve o ego heróico em sua fantasia de morte. Comprar é o que resta. Comprar é nosso modo de fazer o mundo virar alma.
BARCELLOS, Gustavo.
Disponível em:
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=291
Acesso em: 04 dez. 2014.
Texto adaptado
Observe a frase a seguir:
“Os fantasmas são frutos do medo: quem não tem medo não vê fantasmas”.
Os dois pontos entre os dois segmentos da frase podem ser
adequadamente substituídos pelo seguinte conectivo:
O abraço e a flor
A campanha das enfermeiras e a necessidade diária de surpresa.
Saí hoje cedo para caminhar com o objetivo de sempre: mexer o corpo, chacoalhar as ideias e ver a vida como ela é. A colheita não poderia ter sido melhor. Assim que dobrei a esquina, consegui minha dose diária de surpresa boa – tão necessária para mim quanto o sol de abril.
Meninas de 20 e poucos anos exibiam um cartaz que anunciava abraços grátis. Achei que fosse mais uma ação promocional das construtoras de apartamento que, nos últimos meses, passaram a perturbar os moradores na porta de todas as padarias da região. [...]
Algumas ações são nobres e humanitárias. Outras não passam de estratégias comerciais para promover sites, empresas ou palestras de autoajuda.
No caso da enfermagem e da psicologia, a justificativa é a melhoria da qualidade de vida. Estudos demonstram que abraçar reduz os níveis de cortisol e norepinefrina, hormônios relacionados ao estresse crônico e à ocorrência de doenças cardíacas.
O abraço também aumenta a produção de dopamina e serotonina (hormônios do prazer) e de oxitocina (o hormônio do afeto). Quanto mais oxitocina o cérebro libera, mais a pessoa quer ser tocada e menos estressada ela fica. É um círculo virtuoso: quanto mais abraçada ela é, mais ela deseja ser abraçada.
Um estudo realizado no ano passado pela Universidade Médica de Viena demonstrou que o abraço pode mesmo reduzir o stress, o medo e a ansiedade. A oxitocina liberada contribui para a redução da pressão arterial, aumenta o bem-estar e favorece o desempenho da memória.
No entanto, o neurofisiologista Jürgen Sandkühler, autor do trabalho, questiona o valor dos abraços recebidos de pessoas estranhas. A oxitocina é o hormônio produzido pela glândula pituitária, conhecido por favorecer o estabelecimento de laços afetivos entre pais e filhos e entre os casais.
“O efeito do abraço sobre a produção de oxitocina só ocorre quando existe confiança mútua. Se o abraço não é desejado pelas duas pessoas, o efeito positivo se perde”, diz.
Em resumo: as pessoas precisam estar na mesma sintonia. Acredito que isso seja perfeitamente possível entre estranhos. Não sei se o nível dos meus hormônios aumentou, mas a iniciativa das estudantes de enfermagem alegrou meu dia. Espero que elas não percam a ternura quando a realidade da profissão se apresentar.
Como essas meninas, acredito que o bem-estar pode ser contagiante. Ao final de nosso breve encontro, uma delas me ofereceu uma flor feita com capricho e papel crepom.
Resolvi testar o poder da flor. Durante uma hora caminharia com ela na mão e observaria a reação de quem cruzasse meu caminho. Será que alguém notaria alguma coisa fora do script? Será que um sorrisinho escaparia dos lábios? [...]
Voltei para casa com uma supersafra de gentilezas. Nunca ouvi, numa única manhã, tanta gente me desejando bom dia, tanto motorista me dando passagem, tanta conversa, tanto olho no olho, tanto sorriso. O tênis, a roupa, o percurso eram os mesmos. O que mudou foi o abraço e a flor.
Só um pedestre não viu nada. Bateu o portão de um prédio com fones enterrados no ouvido, óculos bem escuros, mochila estufada, ombros curvados para frente – aquele visual e aquele comportamento que são a marca do nosso tempo. Não do meu tempo, mas o de muita gente. Quase me atropelou, mas não notou minha presença. Muito menos a da flor.
(Cristiane Segatto – 12/04/2013. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com//Saude-e-bem-estar/cristiane-segatto/noticia/2013/04/o-abraco-e-flor.html. Com Adaptações.)