Nossa liberdade está sendo deturpada
Bianca Pinheiro
A contemporaneidade é reconhecida pelas
múltiplas liberdades que oferece. Desde os
anos 1960, temos reivindicado de maneira
veemente o direito de expressar livremente
nossas identidades e a nossa sexualidade.
A pílula foi inventada, e a liberdade sexual
feminina vem sendo incrementada desde
então, com um incrível avanço de diversas
vertentes do feminismo; as hierarquias
são questionadas, culminando naquilo que
chamamos de crise de representação; a
homossexualidade foi retirada do rol das
doenças psiquiátricas; novos modelos
familiares surgiram e foram legitimados; entre
outros fatores. Esse cenário certamente nos
oferece múltiplas possibilidades e caminhos.
Podemos escolher o que desejamos entre
uma gama de opções. No entanto, há sinais
de que toda essa nossa liberdade vem sendo
deturpada.
O sociólogo francês Alain Ehrenberg
reconheceu muito precisamente que a
sociedade contemporânea, por trás da fachada
de emancipação, autonomia e soberania
do indivíduo, na verdade, substitui antigos
imperativos por outros, mais difíceis de serem
identificados por conta de sua natureza sutil.
Assim, se em épocas passadas devíamos
resguardar nossa intimidade e valorizar
nossa vida interior e ter uma postura mais
contemplativa e reflexiva diante do mundo,
hoje, senão nos expomos, praticamente não
existimos; se gostamos de estar sozinhos,
somos recriminados; se passamos um feriado
inteiro dentro de casa, somos considerados
“estranhos”; se estamos tristes e se
interagimos pouco, somos doentes.
A liberdade de ser continua limitada
pelo que a sociedade requer de nós. Se não
correspondemos às expectativas do mundo,
uma gama de diagnósticos e remédios
psiquiátricos nos é oferecida. Assim, em vez
de lutarmos para afirmar nossa identidade e nossas vontades, simplesmente nos
submetemos ao status quo, ainda que isso
signifique a autoanulação e o fingimento.
Como não podemos estar tristes, a gente se
contenta em aparentar ser feliz. Como não
podemos estar sozinhos, estamos sempre
atualizando nossas contas do Instagram com
fotos nas quais aparecemos rodeados de
gente, apesar de nos sentirmos extremamente
sós. Como não podemos estar calados,
sustentamos conversas que só fazem sentido
em um contexto de abominação do silêncio.
Que liberdade é essa que classifica
como doentes quem não está de acordo
com a norma de ser feliz e popular? Que
liberdade é essa que nos oferece verdadeiros
cardápios de parceiros em potencial, mas só
proporciona desencontros, porque devemos
ser desapegados? (...) Que liberdade é essa
que nos oprime e nos esmaga para que
possamos, finalmente, dizer “somos livres”,
“somos felizes”, “somos incríveis”?
Joel Birman, renomado psicanalista
brasileiro, diz que vivemos em uma era em que
a alteridade tende ao desaparecimento, o que
gera um cenário onde os indivíduos agem como
meros predadores uns dos outros, utilizando
uns aos outros como meios para alcançar o
gozo e a estetização de si. Eu prefiro não ter
essa liberdade de usar o outro para meu próprio
prazer. Eu prefiro não ter essa liberdade que
me faz temer dizer “eu gosto de você”, porque
o que se espera é que só gostemos de nós
mesmos e sejamos objetos com fins precisos,
e não seres humanos dotados de emoção. Eu
prefiro não ter essa liberdade que me impede
de ficar triste, de chorar, de enfrentar o luto, de
me revelar. Eu prefiro não ter essa liberdade
que poda a humanidade existente em mim,
excluindo a falta de sentido, o desespero e a
maravilha de ser alguém imperfeito.
Fonte: adaptado de http://obviousmag.org/sangria_desatada/2017/ . Acesso em: 10 jan.
2018.