Voo solo
O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre agora dá sentido a um
fenômeno de massa. Se o inferno são os outros, então nossos contemporâneos parecem estar
se movimentando para fugir das catacumbas sulfurosas. Segundo Eric Klinenberg, professor de
Sociologia da Universidade de Nova York e autor do livro Going Solo: The extraordinary rise
and surprising appeal of living alone (editora Penguin), cada vez mais pessoas optam por viver
sozinhas.
O autor carrega nas tintas, embalado por um mercado editorial viciado em títulos de impacto,
argumentos surpreendentes e fatos irrefutáveis, mas o livro tem méritos. Segundo Klinenberg,
estamos presenciando uma inflexão histórica. Cultivamos, durante milênios, uma repulsa
existencial e filosófica à solidão. “O homem que vive isolado, que é incapaz de partilhar os
benefícios da associação política ou não precisa partilhar porque já é autossuficiente, não faz
parte da pólis, e deve, portanto, ser ou uma besta ou um deus”, escreveu Aristóteles (apud
Klinenberg).
As sociedades humanas se estruturaram em torno do desejo fundamental de os indivíduos
viverem na companhia uns dos outros. O isolamento é frequentemente associado à punição.
Uma criança mal comportada é separada de seus pares e colocada sozinha. Um prisioneiro
malcomportado é trancafiado na solitária.
Entretanto, segundo Klinenberg, tudo isso está mudando. Nas últimas décadas, houve um
aumento expressivo do número de homens e mulheres que passaram a viver voluntariamente
sozinhos. O fenômeno é consequência do desenvolvimento econômico, que permite maior
autonomia; da superação da lógica econômica do casamento, que dá maior liberdade às
pessoas para buscar arranjos alternativos; da urbanização, que adensa as comunidades
humanas; e da evolução das tecnologias de informação e de comunicação, que facilitam a
interação entre as pessoas. Resultado: estamos casando mais tarde, prolongando o período
entre o divórcio e o novo casamento, ou evitando um novo casamento, e escapando o quanto
possível da possibilidade de viver com outra pessoa. É o novo solteirismo!
Nas grandes cidades norte-americanas, 40% das moradias têm um único ocupante. Em
Washington e Manhattan, casos extremos, são 50%. E o fenômeno não se restringe aos
Estados Unidos. Paris apresenta números superiores a 50% e, em Estocolmo, a taxa chega a
60%. China, Índia e Brasil, países em desenvolvimento, caminham no mesmo sentido.
Viver sozinho deixou de ser fonte de medo e causa de isolamento social. As vantagens são
notáveis: controle sobre a própria vida, liberdade de ação e melhores condições para perseguir
atividades voltadas para a autorrealização.No imaginário social, vai surgindo um novo modelo
ideal: o neossolteiro, um ou uma profissional de sucesso, socialmente atuante e mestre de sua
existência.
O fenômeno do novo solteirismo relaciona-se a outro fenômeno, maior, de enfraquecimento dos
vínculos e das relações, que se manifesta na vida social e na vida profissional. Richard Sennet
registrou a tendência no livro A Corrosão do Caráter (editora Record), no fim da década de
1990. De fato, o comprometimento dos indivíduos com instituições e organizações vem se
fragilizando há algumas décadas. Hoje, transitamos por inúmeros grupos, empresas e
comunidades, porém estabelecemos relacionamentos apenas tênues e temporários.
Nas empresas, depois de seguidas ondas de reestruturações, enxugamentos e terceirizações,
os empregos “para toda a vida” estão quase extintos. Paradoxalmente, empresários e
executivos continuam esperando alto grau de envolvimento e comprometimento de seus
funcionários, e frustram-se quando não os conseguem. Com a ajuda de asseclas de recursos
humanos, tentam tapar o sol com a peneira, programando palestras motivacionais, abraçando
árvores e promovendo interlúdios culturais. Pouco adianta.
As novas gerações representam para as empresas um considerável desafio: os mais jovens
são individualistas, inquietos e despudoradamente ambiciosos. Saltam de galho em galho
corporativo sem olhar para trás. Habitam redes fluidas, sejam elas comunidades reais ou
virtuais. São impacientes com o presente e ansiosos pelo futuro.
Neste admirável mundo novo, perde espaço o que é estável e profundo, ganha espaço o que é
efêmero e superficial. Afirmam os profetas do mundo plano que terão vantagens os mais
dinâmicos, os mais extrovertidos, aqueles com mais iniciativa e sem medo de errar, aqueles
capazes de usar diligentemente seu capital social em prol da própria marca. E os incomodados
que se mudem… de planeta?
Fonte: cartacapital, 11 de abril de 2012.