Por que não aprendi a tocar violão? Sempre me constituiu motivo de tristeza e humilhação esta precária musicalidade. Uns
tocam piano, existe até quem toque harpa. Eu, nem ao violão me afiz. E não se diga que era pouco o esforço de D. Chiquinha, minha
mestra. Afinava, afinava, apertava as cravelhas, dava um dó agudíssimo na prima, depois outro dó grave no bordão...
Eu pegava no violão de luxo que minha madrinha de crisma mandara do Pará, ajeitava-o mal e mal no colo, começava de boa
vontade: dum, dum, dum...
— Não! Valha-me Santa Cecília! Segunda! Mude!
E eu: dum, dum, dum...
Ai, música, divina música. D. Chiquinha carpia-se. Tanto sentimento de que ela dava exemplo, tanta devoção empregada à toa.
Eu recomeçava, dócil: primeira, segunda...
— D. Chiquinha, fiquei com uma bolha no dedo.
Já não sei como a descobrimos: decerto andava nas suas idas e vindas de casa em casa de aluno. Cobrava dez mil-réis por
mês e mais o dinheiro do bonde. Duas aulas por semana.
Professora de violão, o seu sonho secreto fora sempre o violino, entretanto. Nas prateleiras da sua sala, guardava ela o seu
estradivário — uma rabeca de cego, fanhosa, inválida, metida numa remendada mortalha de veludo azul. Em certos dias de bom
humor e segredo, ela pegava comovida o arco e executava ao violino a valsa dos Sinos de Comeville.
Fora desfeita da sorte aquele meu fracasso, porque eu me supunha dotada e alimentava ambições. Chegara até a pensar, não
digo em concertos, mas num brilhante recital de caridade em que aparecesse de vestido comprido (teria então uns doze anos) e, num
belo contralto, cantasse ao violão certo tango argentino da minha preferência. Mas tudo neste mundo são vaidades: jamais atingi o
tango argentino.
Voltando a D. Chiquinha: o instrumento plebeu que ensinava constituía para minha mestra uma fonte de dissabores. A começar
pelo apelido que lhe davam: D. Chiquinha do Violão. Quando alguém o repetia em sua frente, ela corrigia logo, irritada: — Chiquinha do
Violão, não senhor. Francisca dos Santos. Violão não é meu dono.
Por música clássica não tinha interesse, ou antes, a ignorava. Para D. Chiquinha, a mais requintada manifestação de arte era a
serenata. E dentro desse critério me ensinava visando talvez fazer de mim o que ela já fora em moça —- a musa de todos os
seresteiros da cidade. Sim, não só objeto passivo de canções e arpejos noturnos mas musa ativa e colaborante. O seresteiro dizia da
calçada a sua trova, e lá da penumbra da alcova a donzela tomava do violão e na mesma toada respondia. Eram essas as suas
lembranças mais queridas, aqueles duelos musicais, canta tu de lá, canto eu de cá-e entre os dois o grupo desvanecido dos
comparsas que ajudavam no acompanhamento.
Nos acompanhamentos, a nossa favorita era a modinha “A mais gentil das praieiras”. Dessa eu gostava muito. Porém a mão
rebelde não me acompanhava o entusiasmo.
(Adaptado de: QUEIROZ, Rachel. “A mais gentil das praieiras”. Melhores crônicas. São Paulo: Global Editora, 2012, 1? edição digital)