TEXTO 1
Vez por outra, indo devolver um filme na locadora ou almoçar no
árabe da rua de baixo, dobro uma esquina e tomo um susto. "Ué,
cadê o quarteirão que estava aqui?". Onde, na véspera, havia
casinhas geminadas, roseiras cuidadas por velhotas e janelas de
adolescentes cheias de adesivos, há apenas uma imensa cratera
cercada de tapumes. Em breve, do buraco brotará um prédio com
grandes garagens e minúsculas varandas e será batizado de
Arizona Hills ou Maison Lacroix ou Plaza de Marbella, e isso me
entristece. Não só porque ficará mais feio meu caminho até a
locadora ou até o árabe na rua de baixo, mas porque é meu bairro
que morre devagarinho. Os bairros, como os homens, também têm
um espírito. Às vezes, no fim da tarde, quando ouço o sino da
igreja da Caiubi badalar seis vezes, quase acredito que estou numa
cidade do interior. Aí saio para devolver os vídeos, olho para o
lado, percebo que o quarteirão desapareceu e me dou conta de que
estou em São Paulo e que eu mesmo tenho minha cota de
responsabilidade: moro no segundo andar de um prédio. Ali
embaixo, onde agora fica a garagem, já houve uma cratera e antes
dela o jardim de uma velhota e a janela de um adolescente cheia
de adesivos.
(PRATA, N. A. Perdizes. In: Meio intelectual, meio de esquerda. São
Paulo: Editora 34, 2010.)