Pertencer
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço
a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam,
eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a
nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo
quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me
dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho
medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou,
sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso
de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito
de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova
de “solidão de não pertencer” começou a me invadir como
heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não
é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não
posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de
dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço.
Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma
alegria solitária pode se tornar patética.
É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer:
tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de
tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus
sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se
a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa
de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero
pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma
pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e, no entanto, premente sensação de
precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu
pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse
para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E
então eu soube: pertencer é viver.
(LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Editora Rocco. 1999.
Adaptado.)