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Q1987364 Português
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Velhas cartas 


    “Você nunca saberá o bem que sua carta me fez…” Sinto um choque ao ler esta carta antiga que encontro em um maço de outras. Vejo a data, e então me lembro onde estava quando a recebi. Não me lembro é do que escrevi que fez tanto bem a uma pessoa.
   Agora folheio outras cartas de amigos e amigas; são quase todas de apenas dois ou três anos atrás. Mas, como isso está longe! Sinto-me um pouco humilhado pensando como certas pessoas me eram necessárias e agora nem existiriam mais na minha lembrança se eu não encontrasse essas linhas rabiscadas em Londres ou na Suíça. “Cheguei neste instante; é a primeira coisa que faço, como prometi, escrever para você, mesmo porque durante a viagem pensei demais em você…”
    Isto soa absurdo a dois anos e meio de distância. Não faço a menor ideia do paradeiro dessa mulher de letra redonda; ela, com certeza, mal se lembrará do meu nome. E esse casal, santo Deus, como era amigo: fazíamos planos de viajar juntos pela Itália; os dias que tínhamos passado juntos eram “inesquecíveis”. Essa que se acusa e se desculpa de me haver maltratado, mas eu não me lembro de mágoa nenhuma, seu nome é apenas para mim uma doçura distante.
   Imagino que em algum lugar do mundo há alguém que neste momento remexe, por acaso, uma gaveta qualquer, encontra uma velha carta minha, passa os olhos por curiosidade no que escrevi, hesita um instante em rasgar, e depois a devolve à gaveta com um gesto de displicência, pensando, talvez: “é mesmo, esse sujeito onde andará? Eu nem me lembrava mais dele…”
    E agradeço a esse alguém por não ter rasgado a minha carta: cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta nossa, e não tem esse gesto de deixá-la em algum canto, essa carta que perdeu todo o sentido, mas que foi um instante de ternura, de tristeza, de desejo, de amizade, de vida – essa carta que não diz mais nada e apenas tem força ainda para dar uma pequena e absurda pena de rasgá-la.

(Rubem Braga. A traição das elegantes. Rio de Janeiro:
Editora Record, 1982)

A respeito dos sinais de pontuação empregados no texto, pode-se afirmar que
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