O texto “Ninguém come dinheiro”, de Airton Krenak, foi escri...

Próximas questões
Com base no mesmo assunto
Q2575188 Português
Ninguém come dinheiro


    Quando falo de humanidade não estou falando só do Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos balela, tiramos barbatana de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além da matança de todos os outros humanos que a gente achou que não tinham nada, que estavam aí só para nos suprir com roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade. Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo que não interessa, o que sobra, a sub-humanidade — alguns de nós fazemos parte dela.

   É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra tirar a teta da nossa boca é dizer: “Respirem agora, quero ver”. Isso denuncia o artifício do tipo de vida que nós criamos, porque chega uma hora que você precisa de uma máscara, de um aparelho para respirar, mas, em algum lugar, o aparelho precisa de uma usina hidrelétrica, nuclear ou de um gerador de energia qualquer. E o gerador também pode apagar, independentemente do nosso decreto, da nossa disposição. Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se contarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal de humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra.

    E, se nós não estamos com nada, deveríamos ter contato com a experiência de estar vivos para além dos aparatos tecnológicos que podemos inventar. A ideia da economia, por exemplo, essa coisa invisível, a não ser por aquele emblema de cifrão. Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro. Hoje de manhã eu vi um indígena norte-americano do conselho dos anciões do povo Lakota falar sobre o coronavírus. É um homem de uns setenta e poucos anos, chamado Wakya Un Manee, também conhecido como Vernon Foster. (Vernon, que é um típico nome americano, pois quando os colonos chegaram na América, além de proibirem as línguas nativas, mudavam os nomes das pessoas.) Pois, repetindo as palavras de um ancestral, ele dizia: “Quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro”.

     Quem sabe a própria ideia de humanidade, essa totalidade que nós aprendemos a chamar assim, venha a se dissolver com esses eventos que estamos experimentando. Se isso acontecer, como é que Os caras que concentram a grana do mundo - que são poucos — vão ficar? Quem sabe a gente consiga tirar o chão debaixo dos pés deles. Porque eles precisam de uma humanidade, nem que seja ilusória, para aterrorizarem toda manhã com a ameaça de que a bolsa vai cair, de que o mercado está nervoso, de que o dólar vai subir Quando tudo isso não tiver sentido nenhum — o dólar que se exploda, o mercado que se coma! -, aí não vai ter mais lugar para toda essa concentração de poder. Porque a concentração, de qualquer coisa, só pode existir num determinado ambiente. Até a poluição, se ela se espalhar, sem contenção, o que vai acontecer? O ar vai passar por um processo de limpeza. O ar das cidades não ficou mais limpo quando diminuirmos o ritmo? Acredito que essa ilusão de uma casta de humanoides que detém o segredo do santo graal, que se entope de riqueza enquanto aterroriza o resto do mundo, pode acabar implodindo. Talvez a pista mais recente sobre isso seja aquela história dos bilionários que estão construindo uma plataforma fora da Terra para irem viver, sei lá, em Marte. A gente deveria dizer “Vão logo, esqueçam a gente aqui”. Deveríamos dar um passe livre para eles, para os donos da Tesla, da Amazon. Podem deixar o endereço que depois a gente manda suprimentos. [...]


(Fragmento de: KRENAK, Aliton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020)

O texto “Ninguém come dinheiro”, de Airton Krenak, foi escrito no contexto da pandemia de Covid-19.


O trecho que apresenta uma referência explícita que comprova essa afirmação é:

Alternativas