Valor social da memória
Não há evocação, não há memória sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que ele é se
não for capaz de sair das determinações atuais. Aturada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação.
Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito: sem o trabalho da reflexão e da
localização, seria uma imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la, para que ela não seja
uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição.
Se existe uma memória voltada para a ação, com sua prática de hábitos assimilados, e uma outra
memória que simplesmente revive o passado, parece ser esta a dos velhos, já libertos das atividades
profissionais e familiares. Mas o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual
está maduro, a alta função de unir o começo ao fim, de divisar os limites de uma história inteira. Um mundo
social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu. À conversa
evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: para quem sabe ouvi-la, cria um nexo entre o
passado e o presente, é instigante e inspiradora.
(Adaptado de: BOSI, Ecléa. Memória a sociedade = Lembranças de velhos. 20.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, p. 84)