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Q2345957 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Adjetivo é toda palavra que caracteriza o substantivo, indicando-lhe qualidade, defeito, estado, condição etc. A palavra sublinhada no trecho textual que não exprime qualidade é: 
Alternativas
Q2345956 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Em qual das citações relacionadas a seguir está evidenciada uma opinião do articulista do texto? 
Alternativas
Q2345955 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Os recursos coesivos são um conjunto amplo de mecanismos linguísticos usados para o estabelecimento de relações de sentido entre as partes de um texto verbal, tanto na modalidade oral quanto na escrita. O texto lido é formado por ideias bem articuladas, ligadas umas às outras. Para isso, alguns recursos como o uso de expressões que remetem a outras apresentadas anteriormente foram utilizados. Dentre as expressões textuais destacadas, assinale aquela cuja palavra sublinhada não se trata de uma expressão referencial. 
Alternativas
Q2345954 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Dentre os trechos destacados a seguir, apresenta-se expressa a ideia de oposição em:
Alternativas
Q2345953 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
No excerto “Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: ‘Meu Deus, seus olhos estão esverdeando’.” (10º§), a locução adverbial “além de” indica: 
Alternativas
Q2345952 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Em relação ao significado das palavras empregadas no texto, apenas uma NÃO está correta; assinale-a.  
Alternativas
Q2345951 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
No texto, o elemento que gera a história narrada é:
Alternativas
Q2345950 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Rubem Braga foi o primeiro a elevar a crônica ao nível da mais alta categoria literária. É possível inferir que o principal objetivo comunicativo do texto “Os amantes”, de Rubem Braga, é: 
Alternativas
Q2345949 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.” (3º§) Tendo em vista que os tempos verbais assumem diversos valores semânticos, na passagem anterior, as expressões destacadas exprimem ações 
Alternativas
Q2345948 Português
Os amantes 

    Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
    Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
    Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
    No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos, e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
   O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
    O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
    No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
    O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
    Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
    Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
    Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
    Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. 
    E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

(Disponível em: 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. Record. 1977.) 
Considerando aspectos e estrutura textuais, é correto afirmar que o texto tem como principal objetivo: 
Alternativas
Q1897177 Sociologia
Considerando a obra Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis, assinale a alternativa INCORRETA.
Alternativas
Q1897176 Filosofia
A partir da leitura da obra Teoria dos sistemas e direito penal radical, de Alexandre Kassama, assinale a alternativa correta.
Alternativas
Q1897175 Sociologia

No dia 12/11/2021, a 1ª Subdefensora Pública-Geral da Defensoria Pública do Paraná, mulher negra, lançou o programa "Letrando em Pretoguês - Programa Permanente de Educação Antirracista", cuja frentes de atuação serão múltiplas, com: oferta de cursos de capacitação continuada e palestras sobre racismo e como aprimorar o atendimento da DPE-PR à população negra; implementação ou ampliação das políticas afirmativas internas; criação de comissões voltadas à discussão das questões étnico-raciais; incentivo e destaque ao protagonismo negro dentro da instituição e elaboração de censos étnicos para subsidiar as ações a serem implementadas, entre outras iniciativas.


Considerando esse fato a partir da leitura da obra Racismo Estrutural, de Silvio de Almeida, analise as assertivas a seguir e assinale a alternativa correta.

I. O programa seria desnecessário caso a mulher negra ocupasse o cargo de Defensora Pública-Geral, já que a representatividade negra no cargo máximo da instituição representaria que a Defensoria do Paraná não agiria de forma racista, ao menos durante a sua gestão.

II. O programa demonstra uma frente de práticas antirracistas pela instituição, etapa crucial para o combate ao racismo estrutural.

III. Na perspectiva do racismo como processo político, pode-se afirmar que o programa enfrenta a dimensão institucional da politicidade do racismo, sem que isso reduza o racismo a uma concepção meramente institucional.

IV. Para que o programa seja efetivo na busca por uma instituição justa e igualitária, será necessária a adoção de políticas em prol da preservação de direitos das pessoas brancas, já que o empoderamento dos negros pode levar à prática do chamado racismo reverso.

Alternativas
Q1897174 Sociologia
Durante as análises dos debates sobre a lei referente ao furto de madeira, Karl Marx, no livro Os Despossuídos, observa as seguintes contradições, EXCETO
Alternativas
Q1897173 Legislação da Defensoria Pública
Acerca das garantias e prerrogativas dos membros da Defensoria Pública, assinale a alternativa correta.
Alternativas
Q1897172 Legislação da Defensoria Pública
Assinale a alternativa que representa um instrumento ou medida que concretiza a autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública do Estado do Paraná.
Alternativas
Q1897171 Direito Constitucional

Acerca das funções institucionais, garantias e autonomia administrativa, funcional e financeira da Defensoria Pública, considerando o tratamento constitucional conferido ao órgão e o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), analise as assertivas e assinale a alternativa correta.


I. A Defensoria Pública tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos, desde que adstrito ao critério da hipossuficiência socioeconômica dos titulares.

II. É inconstitucional a Lei Orçamentária Anual na qual Governador do Estado, ao encaminhar o projeto para a Assembleia Legislativa, reduziu a proposta orçamentária elaborada pela Defensoria Pública e que estava de acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

III. A Defensoria Pública detém exclusividade na prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, sendo inconstitucional qualquer iniciativa de Executivo Municipal nesse sentido.

IV. Fere a autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública a ordem judicial para a implementação de determinadas unidades/sedes. 

Alternativas
Q1897170 Legislação da Defensoria Pública
Membro da Defensoria Pública, durante atendimento, foi ameaçado pelo assistido que disse que o mataria caso o resultado de sua demanda não tivesse o fim por ele almejado. Em relação a esse fato hipotético, assinale a alternativa correta.
Alternativas
Q1897169 Direito Administrativo
Em relação à disciplina dos contratos administrativos e considerando a Lei n.º 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), assinale a alternativa correta. 
Alternativas
Q1897168 Direito Administrativo
Sobre o Sistema de Registro de Preços previsto na Lei n.º 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), assinale a alternativa correta.
Alternativas
Respostas
341: D
342: D
343: B
344: C
345: D
346: A
347: A
348: D
349: A
350: C
351: A
352: C
353: D
354: E
355: B
356: E
357: E
358: D
359: D
360: A