A questão se refere ao texto abaixo:
A MERITOCRACIA É UMA ARMADILHA
Em suas origens, a meritocracia fez sentido: com ela se
lançava por terra o sistema aristocrático que dominou a
maior parte da histó ria da humanidade, com privilégios
herdados de geração em geração. Agora ela perpetua mitos e
a desigualdade
É possı́vel que se você chegou a certa posição
socioeconômica, conseguiu reconhecimento social, um bom
salário e um patrimônio considerável, o que conhecemos
como sucesso, pense que foi exclusivamente por seus próprios
méritos. Más notı́cias: também é muito possı́vel que não tenha
sido assim. No percurso vital de cada um o esforço conta, como
é natural, mas o esforço sozinho é mais um fator onde também
é preciso considerar outros que escapam ao nosso controle e
vontade: o berço, a sorte e o talento. A vida é uma loteria, já
cantava Marisol, e também tem muito de herança e de
contatos.
Um sistema em que cada um consiga aquilo que
merece graças ao trabalho duro se chama meritocracia. Soa
bem, e muitas vezes nos dizem que vivemos em uma, e que,
pelo menos, isso seria desejável. Mas vários especialistas
consultados para esta reportagem alertam: a meritocracia não
existe em nossas sociedades e não está claro que sua
existência nos trará virtude. Nas últimas décadas a brecha
entre os vencedores e os perdedores aumentou, gerando
sociedades mais polarizadas e desiguais em rendimentos e
riqueza. A conceitualização do sucesso também mudou: “Os
que chegaram no topo acreditam que seu sucesso é obra sua,
evidência de seu mérito superior, e que os que ficam para trás
merecem seu destino da mesma forma”, diz o filósofo da
Universidade Harvard Michael Sandel, prêmio Princesa de
Astúrias de Ciências Sociais 2018 e autor do livro A Tirania do
Mérito (Editora Civilização Braisleira, 2020). A realidade é que
as coisas não são tão simples e a igualdade de oportunidades
não existe. “Desde o começo do século se detecta um
funcionamento pior de nosso elevador social”, diz o relató rio
Espanha 2050 elaborado pelo Governo de Pedro Sánchez. “Na
Espanha, nascer em famı́lias de baixa renda condiciona as
oportunidades de educação e desenvolvimento profissional
em maior medida do que em outros paı́ses europeus”.
“O talento e o esforço produzem pouco na ausência de
um entorno social bem desenvolvido”, diz o economista da
Universidade Cornell Robert H. Frank, autor do livro Success
and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy (Sucesso
e sorte: Boa Fortuna e o Mito da Meritocracia), que também
aponta um dos feitos perniciosos da meritocracia: “As pessoas
que minimizam a contribuição ao seu sucesso de um entorno
propı́cio estão menos dispostas a apoiar os investimento
públicos necessários para manter esse entorno”. Nesse sentido, a meritocracia pode corroer as polı́ticas sociais, o
Estado de bem-estar, idealizados, justamente, para equilibrar
o terreno social e diminuir as desigualdades. O imposto de
sucessão, outra forma de reequilibrar a sociedade limando as
heranças, é frequentemente ridicularizado (às vezes, por
defensores habituais da meritocracia). Se legitimamos uma
sociedade onde os poucos que ganham levam tudo, se isso
parece justo e natural, se deslegitima a redistribuição da
riqueza e a justiça social. “A ideia de meritocracia é utilizada
para que um sistema social profundamente desigual pareça
justo quando não o é”, diz a soció loga da Universidade de
Londres Jo Littler, autora de Against Meritocracy: Culture,
Power and Myths of Mobility (Contra a meritocracia: cultura,
poder e mitos da mobilidade).
Mas ainda que a meritocracia existisse, talvez não
fosse desejável: “É corrosiva ao bem comum”, diz o filósofo Michael Sandel, “oferece a todos a oportunidade de subir pela
escada do sucesso sem notar que os degraus da escadaria
podem estar cada vez mais separados. E assume que a
sociedade é uma corrida com vencedores e perdedores”.
Segundo o filósofo, essa forma de pensar cria elites arrogantes
e classes populares humilhadas e ressentidas, a quem
disseram que não são suficientemente boas. Por isso, segundo
Sandel, fenômenos de reação contra as elites como o
populismo de Trump e o Brexit. Porque esse é o reverso
tenebroso da meritocracia: se você não fez sucesso você não
tem valor, é tudo culpa sua.
O que fazer? A desigualdade, que encontra
justificativa nas ideias meritocráticas é, junto com a mudança
climática, uma das maiores ameaças à estabilidade do sistema,
como dizem muitas vozes até mesmo do próprio coração do
capitalismo: leva à polarização social, ao auge dos
totalitarismos e ao descrédito popular das democracias
liberais. Mas “o cı́rculo vicioso que inflou a crescente
desigualdade meritocrática pode ser substituı́do por um
cı́rculo virtuoso que assegure a igualdade democrática para
todos”, diz Markovits. Para minimizar essa desigualdade é
fundamental conseguir uma educação pública eficiente que
chegue a todas as camadas da sociedade, assim como a
diminuição do desemprego e o desaparecimento dos
empregos precários, em uma época em que a aceleração
tecnológica complica o mercado de trabalho, ao mesmo tempo
em que são propostas rendas básicas para manter a coesão
social. Uma ideia que ganha cada vez mais força (por exemplo,
nas ideias do presidente norte-americano Joe Biden): “A
melhor resposta polı́tica à desigualdade produzida pela sorte
é conseguir um maior investimento público, taxando mais os
ricos”, conclui o economista Robert H. Frank.
(Adaptado. Autor: Sergio C. Fanjul. Publicado em 18/07/2019.
DisponÍvel em https://brasil.elpais.com/economia/2021-07-18/a-meritocracia-e-uma-armadilha.html)