Insônia infeliz e feliz
De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. Deve ser noite alta. Acendo a luz da
cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. E a cabeça clara e lúcida. Ainda arranjarei alguém
igual a quem eu possa telefonar às duas da noite e que não me maldiga. Quem? Quem sofre de insônia? E as
horas não passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar
porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que preciso perder os quatro quilos que aumentei
com a superalimentação depois do incêndio. E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se numa escuridão
clara. Não, não se pensa. Sente-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão. Ler? Jamais. Escrever?
Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio, quem sabe são cinco horas. Nem quatro chegaram. Quem
estará acordado agora? E nem posso pedir que me telefonem no meio da noite, pois posso estar dormindo e
não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita? Ninguém me perdoaria o vício.
Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o quê? O nada. E o telefone à mão.
Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara:
solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha
no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem
aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes
de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o
sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, com o sol subindo, a casa vai
acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.
(LISPECTOR, Clarice. Disponível em: //www.culturagenial.com/cronicas-famosas. Acesso em: 03/01/2024.)