Vida digital
Dentre as muitas coisas intrigantes, poucas há tão misteriosas quanto o tempo. A ironia é que mal nos damos conta
disso. Estando desde o nascimento submetidos a uma mesma noção de tempo, aceita por todos a nossa volta,
tendemos a achar que ela é a única que corresponde à realidade. Causa um grande choque saber que outras culturas
têm formas diferentes de perceber o tempo e de representar o curso da história. Ainda assim, acreditamos que elas
estão erradas e nós, certos. Ledo engano.
Historicamente, o tempo foi percebido de formas diferentes. Os gregos antigos tinham uma noção cíclica do
tempo. Para eles, o tempo se iniciava com as prodigiosas eras de ouro e dos deuses, declinando depois, até chegar à
crise final com a fraqueza e penúria da era dos homens, quando, então, se reiniciava o ciclo. Para os romanos, o tempo
se enfraquecia na medida em que se afastava do mais sagrado dos eventos: a fundação de Roma. Na Idade Média,
prevalecia o tempo recursivo, pelo qual os cristãos acreditavam percorrer uma via penitencial, desde a expulsão do
Jardim do Éden até o retorno ao Paraíso.
Foi só com a consolidação do capitalismo, a partir do Renascimento, que passou a prevalecer uma noção de tempo
quantitativo, dividido em unidades idênticas e vazias de qualquer conteúdo mítico, cujo símbolo máximo foi o relógio
mecânico, com seu incansável tic‐tac. Essa foi também a época em que a ciência e a técnica se tornaram
preponderantes. Nesse contexto, o maior dos cientistas modernos, Sir. Isaac Newton, formalizou o conceito de tempo
como sendo absoluto. Como pertencemos a esse tempo moderno, é ele que apreendemos, em casa, na escola e nos
relógios ao redor. E achamos, como Newton, que ele é o único verdadeiro!
Mas o mundo moderno foi‐se complicando, e esse conceito fixo e fechado se tornou cada vez menos satisfatório.
De fato, o amplo conhecimento de outras culturas e as grandes transformações científicas forçaram a admitir que cada
povo cria as noções de tempo que correspondam às suas formas e necessidades de vida.
O que é claro, no caso da cultura moderna, é que nossa percepção de tempo ficou coligada ao desenvolvimento
tecnológico. Assim, dos moinhos de vento às caravelas, às ferrovias, aos veículos automotores, aos transatlânticos, aos
aviões, ao cinema, ao rádio, e à tevê, sentimos um efeito de aceleração permanente. O último e mais dramático
episódio nesta saga da aceleração foi assinalado pela Revolução da microeletrônica, a partir dos anos 70. Num repente,
fomos invadidos por inúmeros prodígios técnicos: fax, bips, PCs, celulares, TVs a cabo, modems, e‐mail... O aparato
digital entrava em cena, em toda a sua multiplicidade de recursos.
Tudo parece convergir para tornar as comunicações mais rápidas, o trabalho mais produtivo, a vida mais fácil e
para configurar uma nova concepção de tempo: um tempo extremamente célere, controlado, agora, pelo homem e
suas tecnologias digitais.
(Nicolau Sevcenko. IstoÉ, Edição especial. Vida digital, 1999. Adaptado.)