Antigamente a vida era outra aqui neste lugar
onde o rio, dando areia, cobra-d’água inocente, e indo
ao mar, dividia o campo em que os filhos de
portugueses e da escravatura pisaram.
Couro de pé roçando pele de flor. Mangas
engordando, bambuzais rebentando vento, uma lagoa,
um lago, um laguinho, amendoeiras, pés de jamelão e
o bosque de Eucaliptos. Tudo isso do lado de lá. Do
lado de cá, os morrinhos, casarões mal-assombrados,
as hortas de Portugal Pequeno e boiada pra lá e pra cá
na paz de quem não sabe da morte.
Em diagonal, os braços do rio, desprendidos lá
pela Taquara, cortavam o campo: o direito ao meio; o
esquerdo, que hoje separa os Apês das casas e sobre
o qual está a ponte por onde escoa o tráfego da
principal rua do bairro, na parte de baixo. E, como o
bom braço ao rio volta, o rio totalmente abraçado, ia
ziguezagueando água, esse forasteiro que viaja
parado, levando íris soltas em seu leito, deixando o
coração bater em pedras, doando mililitros para os
corpos que o ousaram, para as bocas que morderam
seu dorso. Ria o rio, mas Busca-Pé bem sabia que todo
rio nasce para morrer um dia.
Um dia essas terras foram cobertas de verde
com carro de boi desafiando estradas de terra,
gargantas de negros cantando samba duro, escavação
de poços de água salobra, legumes e verduras
enchendo caminhões, cobra alisando o mato, redes
armadas nas águas. Aos domingos, jogo de futebol no
campo do Paúra e bebedeira de vinho sob a luz das
noites cheias.
[...]
Os dois filhos de portugueses tratavam das
hortas de Portugal Pequeno nas terras herdadas.
Sabiam que aquela região seria destinada à construção
de um conjunto habitacional, mas não que as obras
estavam para começar em tão pouco tempo.
(LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo.
Companhia das Letras, 2002. p.15)