(1) Senhor futuro ministro da Saúde (...), queremos tratar de um motivo de orgulho nacional, de uma história de resiliência
do Sistema Único de Saúde (SUS). Graças aos esforços de cidadãos e governos de diversos partidos, o Brasil cavou
trincheira internacionalmente reconhecida na luta contra a aids e pela proteção aos direitos das pessoas com HIV.
(2) Foi com os recursos e os profissionais do mesmo SUS – que socorreu o presidente eleito, Jair Bolsonaro, após o bárbaro
atentado –, com a atuação de entidades civis e com base em sólidas provas científicas que se chegou hoje à distribuição na
rede pública de 22 tipos de antirretrovirais a mais de 580 mil pessoas que dependem desses medicamentos para viver.
3) Não pode haver trégua diante de uma epidemia que se aproxima de um milhão de casos e mais de 350 mil mortes desde
1980 no Brasil. A persistência de números espantosos – são 40 mil novos registros de aids e 12,5 mil óbitos por ano no país
– requer ações continuadas para evitar mais infecções e garantir tratamento diário para que cidadãos HIV-positivos
permaneçam bem de saúde.
(4) A questão não é o que as pessoas são ou o que fazem, mas se a elas são asseguradas ou não possibilidades de se
prevenir e se tratar. Quanto mais discriminadas, mais expostas a se infectar estarão as populações que também não chegam
facilmente ao diagnóstico e ao tratamento. A forma negativa e extrema com que muitos ainda reagem àqueles que têm HIV
é uma das principais barreiras para a prevenção que, no final das contas, beneficiaria a todos. Países que trocaram essas
evidências por prescrições morais e religiosas, como alguns do continente africano, colheram catástrofes de saúde pública.
(5) Enquanto vacina e cura ainda estão fora do horizonte, o Brasil segue hesitante ao tolerar o preconceito e ao retardar
inexplicavelmente medidas para que mais gente faça o teste e saiba se tem ou não o HIV. E para que todos que se
descobrem soropositivos tenham a mesma chance de iniciar o tratamento no tempo certo. Aos que já são acompanhados
pela rede pública devem ser dadas condições de adesão à medicação até a supressão viral, estado que preserva a saúde
individual e freia a circulação do vírus entre mais pessoas.
(6) Como alternativa à testagem em serviços de saúde, precisam ser disseminados os testes rápidos em locais comunitários
e os autotestes feitos onde for melhor para cada um. Como o uso de preservativos pode, por vezes, falhar, deve ser
facilitada no SUS a opção altamente eficaz dos medicamentos que, tomados antes ou depois do risco de se infectar,
impedem a transmissão do HIV.
(7) Para populações vulneráveis, como os jovens,– a aids mais avança na faixa de 15 a 22 anos – faltam campanhas em
mídias e formatos digitais com conteúdos que não atribuam culpa e se comuniquem abertamente com as expressões de
sexualidade e sociabilidade dessas novas gerações.
(8) Completa-se com maior financiamento do SUS, para resgatar serviços de referência hoje lotados e com falta de
profissionais; apoiar associações de pacientes; investir em prevenção e na produção de medicamentos genéricos nacionais,
incluindo licenciamento compulsório, no caso de patentes de antirretrovirais prolongadas indevidamente. Os custos de uma
epidemia desgovernada, por certo, seriam infinitamente maiores.
(9) O enfrentamento da aids sempre foi um campo de tensões e polêmicas. Mas mesmo vozes dissonantes na política e nos
costumes podem, com tolerância às diferenças, atuar em nome do bem comum e da saúde coletiva, para acolher as pessoas
afetadas, mobilizar a sociedade para a prevenção e não permitir um passo atrás em uma política bem-sucedida e
conquistada a duras penas.
Mário Scheffer e Caio Rosentha
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Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/11/aids-manifesto-ao-futuro-ministro.shtml Acesso em: 20 jan. 2019.
Adaptado.