TEXTO II
Arte e cirurgia estética
A prática da cirurgia estética, tal como vem sendo
intensamente exercida na cultura contemporânea, visa a adequar
um corpo aos valores exaltados pela cultura. Esta constrói,
assim, um lugar estético previamente definido e exalta-o como
norma; os que não estiverem adequados a essa construção
são marginalizados, estão à margem, isto é, fora do lugar. A
experiência subjetiva – negativa – que provocará a demanda
pela cirurgia estética é portanto a experiência de uma atopia, de
um estar fora do lugar, de um não ter lugar. A cirurgia estética
então aparece como o instrumento que a cultura disponibiliza
para que as pessoas tornem-se adequadas ao lugar, ponham
fim à sensação existencialmente desconfortável da atopia.
Curiosamente, a precondição subjetiva para uma experiência
de arte é muitas vezes também a experiência negativa da atopia.
Os caminhos da arte e da cirurgia estética se originam na mesma
encruzilhada – seus destinos entretanto serão radicalmente
diferentes. O que é a experiência da atopia? A criança que
tem problemas de saúde e cuja debilidade a impossibilita de
participar, normalmente, das atividades corriqueiras das demais
crianças, impedindo-a assim de pertencer a um grupo. É o
caso do grande pianista Nelson Freire, tal como nos conta o
documentário de João Moreira Salles. A saúde frágil cria um
pequeno exílio, um outro lugar que, contudo, não pode ainda
ser experimentado como lugar: não há nada nele, ele se define
apenas negativamente – pela impossibilidade, pelo vazio, pela
ausência, por não ser o “verdadeiro” lugar, isto é, o lugar do
grupo, da aceitação, da norma.
E onde está a arte nisso tudo? A arte é exatamente o meio
pelo qual, na encruzilhada da atopia, preenche-se o vazio do
isolamento dando-lhe um conteúdo e fazendo dele, assim, um
espaço – um lugar. A arte é o meio pelo qual o sujeito nomeia a si
e ao mundo de uma outra forma. Essa renomeação cria um lugar,
na medida em que um mundo renomeado é imediatamente um
mundo revalorado. Isso reconfigura todo o espaço, pois é uma
determinada estrutura de valoração, normativa, que condena a
diferença à atopia.
Francisco Bosco
(Extraído e adaptado de: Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007)