Questões de Concurso Público IF-TO 2019 para Professor - Geografia
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Texto 1
Como ler os clássicos?
§ 1º Em recente artigo para o jornal The New York Times, o novelista Brian Morton compara a leitura dos grandes escritores do passado a uma viagem no tempo, na qual o aventureiro deve mover-se com cautela, sem jamais tentar impor os seus costumes aos nativos de um longínquo período da história, cujas práticas não correspondem às nossas.
§ 2º Segundo o autor, isso não quer dizer que escritores antigos estejam imunes à crítica contemporânea, como se a autoridade do cânone em relação à crítica seguisse um critério de mérito por antiguidade, a partir do qual um texto deva ser protegido a qualquer custo — pelo simples fato de ter sobrevivido às mais diversas provas de resistência ao tempo.
§ 3º Ora, por mais antigo que seja, nenhum texto está isento de reinterpretações e críticas. Exemplo disso é o que nos propõe o estudioso Harold Bloom em “O Livro de J”, em que discorre sobre a possibilidade de alguns trechos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) terem sido compostos por uma mulher.
§ 4º Assim, Morton recomenda que a crítica não se antecipe ao bom exercício da leitura. Algo raro nos dias de hoje, em que muitas vezes se opta por boicotar certas obras antes mesmo de confrontá-las por méritos artísticos específicos e prováveis limitações de fundo ético. Exemplo disso são seus estudantes que evitam a leitura de Edith Wharton (autora de “A Casa da Alegria”) e Dostoiévski, sob o pretexto de que qualquer suspeita de antissemitismo deveria ser banida da literatura.
§ 5º Ao referir-se a esse problema, Morton argumenta que, embora a crescente oposição dos estudantes seja alimentada por uma genuína sede de justiça social, a sobrevivência dos clássicos em departamentos de literatura não seria motivada pela pulsão reacionária de velhos professores, mas pela necessidade de compreendermos o terreno em que a criatividade humana se manifesta em um dado contexto histórico e cultural.
§ 6º Não há dúvidas de que as grandes vozes literárias do passado tenham uma visão de mundo limitada por preconceitos de época. Dessa queixa nem mesmo o mais precavido dos nossos contemporâneos conseguiria se safar! Afinal, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche já declarava ser inevitável que todos os grandes espíritos estivessem ligados aos seus tempos por meio de algum preconceito.
§ 7º Mesmo assim, Morton ressalta que ainda temos muito a ganhar com a cuidadosa leitura desses textos que hoje são tidos por controversos. Segundo o autor, esse ganho se traduziria em um exercício de humildade a partir do qual o exame de um passado literário nos tornaria capazes de refletir sobre as limitações das práticas artísticas e dos costumes morais da nossa própria época.
§ 8º Em um diálogo de 2017 com o psicólogo Jordan Peterson, Camille Paglia faz uma observação complementar ao ressaltar que um texto não resiste ao tempo por imposição de uma elite cultural, mas por meio do seu constante uso pela tradição, enquanto referência à prática literária corrente. Ou seja, aquilo que nós consideramos grande arte é determinado pelas necessidades dos próprios artistas.
§ 9º Ao adotar-se o raciocínio de Paglia, chega-se à conclusão de que a permanência de autores como Homero e Shakespeare no cânone literário não seria consequência de uma conspiração do poder político e acadêmico para privilegiar determinados escritores em detrimento de outros. Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história.
§ 10. Homero é um dos autores mais relevantes do cânone pelo fato de suas criações servirem de inspiração para escritores outros de épocas diversas. Desde os dramaturgos da antiga Grécia — como Ésquilo, que disse que suas peças não passavam de migalhas do banquete homérico — e Virgílio, o romano, até escritores modernos como o poeta e historiador britânico Robert Graves, autor de “A Filha de Homero”, e a escritora canadense Margaret Atwood com o seu “The Penelopiad”.
§ 11. Da mesma forma, Shakespeare teria influenciado outros escritores desde o seu advento, passando pelo teatro alemão do século 18 — por exemplo, tragédias históricas como “Götz von Berlichingen” e “Egmont” de Goethe — até o cinema japonês do século 20, em filmes do diretor Akira Kurosawa — tanto “Trono Manchado de Sangue” como “Ran”, cujos roteiros são adaptações dos dramas “Macbeth” e “Rei Lear”.
§ 12. Compreender essa teia de influências e associações é uma das tarefas mais difíceis do professor e crítico literário, cuja função mais ampla é a de oferecer ao público uma chave de leitura que seja simultaneamente plausível e criativa, sem que para isso tenha a necessidade de extrapolar os limites de uma obra — ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas —, como se a própria obra e o seu contexto histórico não fossem capazes de despertar a fome literária do leitor.
§ 13. Desde o começo do meu doutorado, reflito sobre a melhor forma de ler e ensinar os clássicos da literatura alemã. Assim, durante o período em que me dedico aos alunos, como nas horas em que desenvolvo a minha tese, busco aplicar uma síntese das duas estratégias abordadas neste pequeno ensaio, quais sejam: a reconstrução de um contexto histórico específico na tentativa de emprestar uma ordem ao emaranhado de influências artísticas e filosóficas necessárias para o entendimento de autores como Goethe.
§ 14. Nesse afã, dedico a maior parte das minhas horas de estudo à versão de Goethe de “Ifigênia em Táuris”. Exercício em que procuro entender o contexto histórico de cada uma das versões dessa tragédia, ao mesmo tempo em que traço uma narrativa mais ampla sobre a recepção do texto original de Eurípides na Alemanha do século 18.
§ 15. Contudo, atento aos detalhes da versão de Goethe, que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época, buscando ressaltar as qualidades morais atribuídas à protagonista, cujas atitudes revelam um importante questionamento sobre a relação entre gênero e autonomia na obra do escritor alemão.
§ 16. Goethe é um dos muitos autores clássicos arbitrariamente criticados pelas suas representações do feminino. No entanto, quanto mais tempo dedico ao estudo da sua obra, mais noto que determinadas críticas não fazem o menor sentido.
§ 17. Isso prova que, muitas vezes, a reputação de um escritor canônico entre os nossos contemporâneos apenas revela a inabilidade de nossa época em reconhecer os raros, porém eficientes, esforços do passado na promoção das liberdades que hoje consagramos.
§ 18. Não se trata de uma simples coincidência que Goethe tenha sido uma importante referência literária para a escritora George Eliot, autora de “Middlemarch”, ou que Elena Ferrante, na atualidade, tome uma citação de “Fausto” como a epígrafe de “A Amiga Genial”, o primeiro dos quatro volumes da ilustre série napolitana — uma espécie de “bildungsroman” (romance de formação ou amadurecimento) para os nossos tempos, sobre a busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade!
ALBURQUEQUE, Juliana de. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2019.
Texto 1
Como ler os clássicos?
§ 1º Em recente artigo para o jornal The New York Times, o novelista Brian Morton compara a leitura dos grandes escritores do passado a uma viagem no tempo, na qual o aventureiro deve mover-se com cautela, sem jamais tentar impor os seus costumes aos nativos de um longínquo período da história, cujas práticas não correspondem às nossas.
§ 2º Segundo o autor, isso não quer dizer que escritores antigos estejam imunes à crítica contemporânea, como se a autoridade do cânone em relação à crítica seguisse um critério de mérito por antiguidade, a partir do qual um texto deva ser protegido a qualquer custo — pelo simples fato de ter sobrevivido às mais diversas provas de resistência ao tempo.
§ 3º Ora, por mais antigo que seja, nenhum texto está isento de reinterpretações e críticas. Exemplo disso é o que nos propõe o estudioso Harold Bloom em “O Livro de J”, em que discorre sobre a possibilidade de alguns trechos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) terem sido compostos por uma mulher.
§ 4º Assim, Morton recomenda que a crítica não se antecipe ao bom exercício da leitura. Algo raro nos dias de hoje, em que muitas vezes se opta por boicotar certas obras antes mesmo de confrontá-las por méritos artísticos específicos e prováveis limitações de fundo ético. Exemplo disso são seus estudantes que evitam a leitura de Edith Wharton (autora de “A Casa da Alegria”) e Dostoiévski, sob o pretexto de que qualquer suspeita de antissemitismo deveria ser banida da literatura.
§ 5º Ao referir-se a esse problema, Morton argumenta que, embora a crescente oposição dos estudantes seja alimentada por uma genuína sede de justiça social, a sobrevivência dos clássicos em departamentos de literatura não seria motivada pela pulsão reacionária de velhos professores, mas pela necessidade de compreendermos o terreno em que a criatividade humana se manifesta em um dado contexto histórico e cultural.
§ 6º Não há dúvidas de que as grandes vozes literárias do passado tenham uma visão de mundo limitada por preconceitos de época. Dessa queixa nem mesmo o mais precavido dos nossos contemporâneos conseguiria se safar! Afinal, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche já declarava ser inevitável que todos os grandes espíritos estivessem ligados aos seus tempos por meio de algum preconceito.
§ 7º Mesmo assim, Morton ressalta que ainda temos muito a ganhar com a cuidadosa leitura desses textos que hoje são tidos por controversos. Segundo o autor, esse ganho se traduziria em um exercício de humildade a partir do qual o exame de um passado literário nos tornaria capazes de refletir sobre as limitações das práticas artísticas e dos costumes morais da nossa própria época.
§ 8º Em um diálogo de 2017 com o psicólogo Jordan Peterson, Camille Paglia faz uma observação complementar ao ressaltar que um texto não resiste ao tempo por imposição de uma elite cultural, mas por meio do seu constante uso pela tradição, enquanto referência à prática literária corrente. Ou seja, aquilo que nós consideramos grande arte é determinado pelas necessidades dos próprios artistas.
§ 9º Ao adotar-se o raciocínio de Paglia, chega-se à conclusão de que a permanência de autores como Homero e Shakespeare no cânone literário não seria consequência de uma conspiração do poder político e acadêmico para privilegiar determinados escritores em detrimento de outros. Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história.
§ 10. Homero é um dos autores mais relevantes do cânone pelo fato de suas criações servirem de inspiração para escritores outros de épocas diversas. Desde os dramaturgos da antiga Grécia — como Ésquilo, que disse que suas peças não passavam de migalhas do banquete homérico — e Virgílio, o romano, até escritores modernos como o poeta e historiador britânico Robert Graves, autor de “A Filha de Homero”, e a escritora canadense Margaret Atwood com o seu “The Penelopiad”.
§ 11. Da mesma forma, Shakespeare teria influenciado outros escritores desde o seu advento, passando pelo teatro alemão do século 18 — por exemplo, tragédias históricas como “Götz von Berlichingen” e “Egmont” de Goethe — até o cinema japonês do século 20, em filmes do diretor Akira Kurosawa — tanto “Trono Manchado de Sangue” como “Ran”, cujos roteiros são adaptações dos dramas “Macbeth” e “Rei Lear”.
§ 12. Compreender essa teia de influências e associações é uma das tarefas mais difíceis do professor e crítico literário, cuja função mais ampla é a de oferecer ao público uma chave de leitura que seja simultaneamente plausível e criativa, sem que para isso tenha a necessidade de extrapolar os limites de uma obra — ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas —, como se a própria obra e o seu contexto histórico não fossem capazes de despertar a fome literária do leitor.
§ 13. Desde o começo do meu doutorado, reflito sobre a melhor forma de ler e ensinar os clássicos da literatura alemã. Assim, durante o período em que me dedico aos alunos, como nas horas em que desenvolvo a minha tese, busco aplicar uma síntese das duas estratégias abordadas neste pequeno ensaio, quais sejam: a reconstrução de um contexto histórico específico na tentativa de emprestar uma ordem ao emaranhado de influências artísticas e filosóficas necessárias para o entendimento de autores como Goethe.
§ 14. Nesse afã, dedico a maior parte das minhas horas de estudo à versão de Goethe de “Ifigênia em Táuris”. Exercício em que procuro entender o contexto histórico de cada uma das versões dessa tragédia, ao mesmo tempo em que traço uma narrativa mais ampla sobre a recepção do texto original de Eurípides na Alemanha do século 18.
§ 15. Contudo, atento aos detalhes da versão de Goethe, que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época, buscando ressaltar as qualidades morais atribuídas à protagonista, cujas atitudes revelam um importante questionamento sobre a relação entre gênero e autonomia na obra do escritor alemão.
§ 16. Goethe é um dos muitos autores clássicos arbitrariamente criticados pelas suas representações do feminino. No entanto, quanto mais tempo dedico ao estudo da sua obra, mais noto que determinadas críticas não fazem o menor sentido.
§ 17. Isso prova que, muitas vezes, a reputação de um escritor canônico entre os nossos contemporâneos apenas revela a inabilidade de nossa época em reconhecer os raros, porém eficientes, esforços do passado na promoção das liberdades que hoje consagramos.
§ 18. Não se trata de uma simples coincidência que Goethe tenha sido uma importante referência literária para a escritora George Eliot, autora de “Middlemarch”, ou que Elena Ferrante, na atualidade, tome uma citação de “Fausto” como a epígrafe de “A Amiga Genial”, o primeiro dos quatro volumes da ilustre série napolitana — uma espécie de “bildungsroman” (romance de formação ou amadurecimento) para os nossos tempos, sobre a busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade!
ALBURQUEQUE, Juliana de. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2019.
Com base nas ideias expressas no texto 1, considere as assertivas seguintes:
I. O bom exercício da leitura de grandes obras do passado exige humildade do leitor, de modo que este não demande do escritor distante do tempo presente adesão aos costumes contemporâneos.
II. O valor ético e moral de uma obra deve se sobrepor a suas qualidades artísticas.
III. O contexto em que uma obra clássica foi escrita não é necessário para a sua boa compreensão, haja vista que a cultura contemporânea, vivenciada pelos atuais leitores, se revela diversa da cultura da época em que a obra foi produzida.
IV. Escritores contemporâneos, ao contrário dos clássicos, não estão suscetíveis a vocalizar preconceitos em suas obras, dado que a cultura presente é marcada pela adesão à justiça social.
V. A influência da obra de Goethe em uma obra contemporânea que trata da busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade corrobora o argumento de que o escritor não merece as críticas que recebeu acerca da representação do feminino em sua obra.
Assinale a opção correta:
Texto 1
Como ler os clássicos?
§ 1º Em recente artigo para o jornal The New York Times, o novelista Brian Morton compara a leitura dos grandes escritores do passado a uma viagem no tempo, na qual o aventureiro deve mover-se com cautela, sem jamais tentar impor os seus costumes aos nativos de um longínquo período da história, cujas práticas não correspondem às nossas.
§ 2º Segundo o autor, isso não quer dizer que escritores antigos estejam imunes à crítica contemporânea, como se a autoridade do cânone em relação à crítica seguisse um critério de mérito por antiguidade, a partir do qual um texto deva ser protegido a qualquer custo — pelo simples fato de ter sobrevivido às mais diversas provas de resistência ao tempo.
§ 3º Ora, por mais antigo que seja, nenhum texto está isento de reinterpretações e críticas. Exemplo disso é o que nos propõe o estudioso Harold Bloom em “O Livro de J”, em que discorre sobre a possibilidade de alguns trechos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) terem sido compostos por uma mulher.
§ 4º Assim, Morton recomenda que a crítica não se antecipe ao bom exercício da leitura. Algo raro nos dias de hoje, em que muitas vezes se opta por boicotar certas obras antes mesmo de confrontá-las por méritos artísticos específicos e prováveis limitações de fundo ético. Exemplo disso são seus estudantes que evitam a leitura de Edith Wharton (autora de “A Casa da Alegria”) e Dostoiévski, sob o pretexto de que qualquer suspeita de antissemitismo deveria ser banida da literatura.
§ 5º Ao referir-se a esse problema, Morton argumenta que, embora a crescente oposição dos estudantes seja alimentada por uma genuína sede de justiça social, a sobrevivência dos clássicos em departamentos de literatura não seria motivada pela pulsão reacionária de velhos professores, mas pela necessidade de compreendermos o terreno em que a criatividade humana se manifesta em um dado contexto histórico e cultural.
§ 6º Não há dúvidas de que as grandes vozes literárias do passado tenham uma visão de mundo limitada por preconceitos de época. Dessa queixa nem mesmo o mais precavido dos nossos contemporâneos conseguiria se safar! Afinal, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche já declarava ser inevitável que todos os grandes espíritos estivessem ligados aos seus tempos por meio de algum preconceito.
§ 7º Mesmo assim, Morton ressalta que ainda temos muito a ganhar com a cuidadosa leitura desses textos que hoje são tidos por controversos. Segundo o autor, esse ganho se traduziria em um exercício de humildade a partir do qual o exame de um passado literário nos tornaria capazes de refletir sobre as limitações das práticas artísticas e dos costumes morais da nossa própria época.
§ 8º Em um diálogo de 2017 com o psicólogo Jordan Peterson, Camille Paglia faz uma observação complementar ao ressaltar que um texto não resiste ao tempo por imposição de uma elite cultural, mas por meio do seu constante uso pela tradição, enquanto referência à prática literária corrente. Ou seja, aquilo que nós consideramos grande arte é determinado pelas necessidades dos próprios artistas.
§ 9º Ao adotar-se o raciocínio de Paglia, chega-se à conclusão de que a permanência de autores como Homero e Shakespeare no cânone literário não seria consequência de uma conspiração do poder político e acadêmico para privilegiar determinados escritores em detrimento de outros. Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história.
§ 10. Homero é um dos autores mais relevantes do cânone pelo fato de suas criações servirem de inspiração para escritores outros de épocas diversas. Desde os dramaturgos da antiga Grécia — como Ésquilo, que disse que suas peças não passavam de migalhas do banquete homérico — e Virgílio, o romano, até escritores modernos como o poeta e historiador britânico Robert Graves, autor de “A Filha de Homero”, e a escritora canadense Margaret Atwood com o seu “The Penelopiad”.
§ 11. Da mesma forma, Shakespeare teria influenciado outros escritores desde o seu advento, passando pelo teatro alemão do século 18 — por exemplo, tragédias históricas como “Götz von Berlichingen” e “Egmont” de Goethe — até o cinema japonês do século 20, em filmes do diretor Akira Kurosawa — tanto “Trono Manchado de Sangue” como “Ran”, cujos roteiros são adaptações dos dramas “Macbeth” e “Rei Lear”.
§ 12. Compreender essa teia de influências e associações é uma das tarefas mais difíceis do professor e crítico literário, cuja função mais ampla é a de oferecer ao público uma chave de leitura que seja simultaneamente plausível e criativa, sem que para isso tenha a necessidade de extrapolar os limites de uma obra — ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas —, como se a própria obra e o seu contexto histórico não fossem capazes de despertar a fome literária do leitor.
§ 13. Desde o começo do meu doutorado, reflito sobre a melhor forma de ler e ensinar os clássicos da literatura alemã. Assim, durante o período em que me dedico aos alunos, como nas horas em que desenvolvo a minha tese, busco aplicar uma síntese das duas estratégias abordadas neste pequeno ensaio, quais sejam: a reconstrução de um contexto histórico específico na tentativa de emprestar uma ordem ao emaranhado de influências artísticas e filosóficas necessárias para o entendimento de autores como Goethe.
§ 14. Nesse afã, dedico a maior parte das minhas horas de estudo à versão de Goethe de “Ifigênia em Táuris”. Exercício em que procuro entender o contexto histórico de cada uma das versões dessa tragédia, ao mesmo tempo em que traço uma narrativa mais ampla sobre a recepção do texto original de Eurípides na Alemanha do século 18.
§ 15. Contudo, atento aos detalhes da versão de Goethe, que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época, buscando ressaltar as qualidades morais atribuídas à protagonista, cujas atitudes revelam um importante questionamento sobre a relação entre gênero e autonomia na obra do escritor alemão.
§ 16. Goethe é um dos muitos autores clássicos arbitrariamente criticados pelas suas representações do feminino. No entanto, quanto mais tempo dedico ao estudo da sua obra, mais noto que determinadas críticas não fazem o menor sentido.
§ 17. Isso prova que, muitas vezes, a reputação de um escritor canônico entre os nossos contemporâneos apenas revela a inabilidade de nossa época em reconhecer os raros, porém eficientes, esforços do passado na promoção das liberdades que hoje consagramos.
§ 18. Não se trata de uma simples coincidência que Goethe tenha sido uma importante referência literária para a escritora George Eliot, autora de “Middlemarch”, ou que Elena Ferrante, na atualidade, tome uma citação de “Fausto” como a epígrafe de “A Amiga Genial”, o primeiro dos quatro volumes da ilustre série napolitana — uma espécie de “bildungsroman” (romance de formação ou amadurecimento) para os nossos tempos, sobre a busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade!
ALBURQUEQUE, Juliana de. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2019.
Texto 1
Como ler os clássicos?
§ 1º Em recente artigo para o jornal The New York Times, o novelista Brian Morton compara a leitura dos grandes escritores do passado a uma viagem no tempo, na qual o aventureiro deve mover-se com cautela, sem jamais tentar impor os seus costumes aos nativos de um longínquo período da história, cujas práticas não correspondem às nossas.
§ 2º Segundo o autor, isso não quer dizer que escritores antigos estejam imunes à crítica contemporânea, como se a autoridade do cânone em relação à crítica seguisse um critério de mérito por antiguidade, a partir do qual um texto deva ser protegido a qualquer custo — pelo simples fato de ter sobrevivido às mais diversas provas de resistência ao tempo.
§ 3º Ora, por mais antigo que seja, nenhum texto está isento de reinterpretações e críticas. Exemplo disso é o que nos propõe o estudioso Harold Bloom em “O Livro de J”, em que discorre sobre a possibilidade de alguns trechos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) terem sido compostos por uma mulher.
§ 4º Assim, Morton recomenda que a crítica não se antecipe ao bom exercício da leitura. Algo raro nos dias de hoje, em que muitas vezes se opta por boicotar certas obras antes mesmo de confrontá-las por méritos artísticos específicos e prováveis limitações de fundo ético. Exemplo disso são seus estudantes que evitam a leitura de Edith Wharton (autora de “A Casa da Alegria”) e Dostoiévski, sob o pretexto de que qualquer suspeita de antissemitismo deveria ser banida da literatura.
§ 5º Ao referir-se a esse problema, Morton argumenta que, embora a crescente oposição dos estudantes seja alimentada por uma genuína sede de justiça social, a sobrevivência dos clássicos em departamentos de literatura não seria motivada pela pulsão reacionária de velhos professores, mas pela necessidade de compreendermos o terreno em que a criatividade humana se manifesta em um dado contexto histórico e cultural.
§ 6º Não há dúvidas de que as grandes vozes literárias do passado tenham uma visão de mundo limitada por preconceitos de época. Dessa queixa nem mesmo o mais precavido dos nossos contemporâneos conseguiria se safar! Afinal, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche já declarava ser inevitável que todos os grandes espíritos estivessem ligados aos seus tempos por meio de algum preconceito.
§ 7º Mesmo assim, Morton ressalta que ainda temos muito a ganhar com a cuidadosa leitura desses textos que hoje são tidos por controversos. Segundo o autor, esse ganho se traduziria em um exercício de humildade a partir do qual o exame de um passado literário nos tornaria capazes de refletir sobre as limitações das práticas artísticas e dos costumes morais da nossa própria época.
§ 8º Em um diálogo de 2017 com o psicólogo Jordan Peterson, Camille Paglia faz uma observação complementar ao ressaltar que um texto não resiste ao tempo por imposição de uma elite cultural, mas por meio do seu constante uso pela tradição, enquanto referência à prática literária corrente. Ou seja, aquilo que nós consideramos grande arte é determinado pelas necessidades dos próprios artistas.
§ 9º Ao adotar-se o raciocínio de Paglia, chega-se à conclusão de que a permanência de autores como Homero e Shakespeare no cânone literário não seria consequência de uma conspiração do poder político e acadêmico para privilegiar determinados escritores em detrimento de outros. Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história.
§ 10. Homero é um dos autores mais relevantes do cânone pelo fato de suas criações servirem de inspiração para escritores outros de épocas diversas. Desde os dramaturgos da antiga Grécia — como Ésquilo, que disse que suas peças não passavam de migalhas do banquete homérico — e Virgílio, o romano, até escritores modernos como o poeta e historiador britânico Robert Graves, autor de “A Filha de Homero”, e a escritora canadense Margaret Atwood com o seu “The Penelopiad”.
§ 11. Da mesma forma, Shakespeare teria influenciado outros escritores desde o seu advento, passando pelo teatro alemão do século 18 — por exemplo, tragédias históricas como “Götz von Berlichingen” e “Egmont” de Goethe — até o cinema japonês do século 20, em filmes do diretor Akira Kurosawa — tanto “Trono Manchado de Sangue” como “Ran”, cujos roteiros são adaptações dos dramas “Macbeth” e “Rei Lear”.
§ 12. Compreender essa teia de influências e associações é uma das tarefas mais difíceis do professor e crítico literário, cuja função mais ampla é a de oferecer ao público uma chave de leitura que seja simultaneamente plausível e criativa, sem que para isso tenha a necessidade de extrapolar os limites de uma obra — ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas —, como se a própria obra e o seu contexto histórico não fossem capazes de despertar a fome literária do leitor.
§ 13. Desde o começo do meu doutorado, reflito sobre a melhor forma de ler e ensinar os clássicos da literatura alemã. Assim, durante o período em que me dedico aos alunos, como nas horas em que desenvolvo a minha tese, busco aplicar uma síntese das duas estratégias abordadas neste pequeno ensaio, quais sejam: a reconstrução de um contexto histórico específico na tentativa de emprestar uma ordem ao emaranhado de influências artísticas e filosóficas necessárias para o entendimento de autores como Goethe.
§ 14. Nesse afã, dedico a maior parte das minhas horas de estudo à versão de Goethe de “Ifigênia em Táuris”. Exercício em que procuro entender o contexto histórico de cada uma das versões dessa tragédia, ao mesmo tempo em que traço uma narrativa mais ampla sobre a recepção do texto original de Eurípides na Alemanha do século 18.
§ 15. Contudo, atento aos detalhes da versão de Goethe, que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época, buscando ressaltar as qualidades morais atribuídas à protagonista, cujas atitudes revelam um importante questionamento sobre a relação entre gênero e autonomia na obra do escritor alemão.
§ 16. Goethe é um dos muitos autores clássicos arbitrariamente criticados pelas suas representações do feminino. No entanto, quanto mais tempo dedico ao estudo da sua obra, mais noto que determinadas críticas não fazem o menor sentido.
§ 17. Isso prova que, muitas vezes, a reputação de um escritor canônico entre os nossos contemporâneos apenas revela a inabilidade de nossa época em reconhecer os raros, porém eficientes, esforços do passado na promoção das liberdades que hoje consagramos.
§ 18. Não se trata de uma simples coincidência que Goethe tenha sido uma importante referência literária para a escritora George Eliot, autora de “Middlemarch”, ou que Elena Ferrante, na atualidade, tome uma citação de “Fausto” como a epígrafe de “A Amiga Genial”, o primeiro dos quatro volumes da ilustre série napolitana — uma espécie de “bildungsroman” (romance de formação ou amadurecimento) para os nossos tempos, sobre a busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade!
ALBURQUEQUE, Juliana de. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2019.
Considerando os aspectos linguísticos do texto, julgue as afirmativas a seguir:
I. No § 8º, a expressão “Ou seja” introduz uma paráfrase.
II. No trecho “capazes de despertar a fome literária do leitor” (§ 12), a autora vale-se de linguagem conotativa.
III. No § 3º, a palavra “Ora” tem sentido diferente daquele empregado no excerto “ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas” (§ 12).
IV. O excerto “Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história” (§ 9º) poderia ser assim redigido, mantidos o sentido original e a norma-padrão: “Isso decorre, pois, da vitalidade das suas influências ao longo da história”.
V. Estariam preservados o sentido original e a norma-padrão da língua, caso a autora, no § 1º, substituísse a forma verbal “correspondem” pela forma verbal “correspondam”, conforme o seguinte registro: “cujas práticas correspondam às nossas”.
Assinale a opção correta:
Texto 1
Como ler os clássicos?
§ 1º Em recente artigo para o jornal The New York Times, o novelista Brian Morton compara a leitura dos grandes escritores do passado a uma viagem no tempo, na qual o aventureiro deve mover-se com cautela, sem jamais tentar impor os seus costumes aos nativos de um longínquo período da história, cujas práticas não correspondem às nossas.
§ 2º Segundo o autor, isso não quer dizer que escritores antigos estejam imunes à crítica contemporânea, como se a autoridade do cânone em relação à crítica seguisse um critério de mérito por antiguidade, a partir do qual um texto deva ser protegido a qualquer custo — pelo simples fato de ter sobrevivido às mais diversas provas de resistência ao tempo.
§ 3º Ora, por mais antigo que seja, nenhum texto está isento de reinterpretações e críticas. Exemplo disso é o que nos propõe o estudioso Harold Bloom em “O Livro de J”, em que discorre sobre a possibilidade de alguns trechos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) terem sido compostos por uma mulher.
§ 4º Assim, Morton recomenda que a crítica não se antecipe ao bom exercício da leitura. Algo raro nos dias de hoje, em que muitas vezes se opta por boicotar certas obras antes mesmo de confrontá-las por méritos artísticos específicos e prováveis limitações de fundo ético. Exemplo disso são seus estudantes que evitam a leitura de Edith Wharton (autora de “A Casa da Alegria”) e Dostoiévski, sob o pretexto de que qualquer suspeita de antissemitismo deveria ser banida da literatura.
§ 5º Ao referir-se a esse problema, Morton argumenta que, embora a crescente oposição dos estudantes seja alimentada por uma genuína sede de justiça social, a sobrevivência dos clássicos em departamentos de literatura não seria motivada pela pulsão reacionária de velhos professores, mas pela necessidade de compreendermos o terreno em que a criatividade humana se manifesta em um dado contexto histórico e cultural.
§ 6º Não há dúvidas de que as grandes vozes literárias do passado tenham uma visão de mundo limitada por preconceitos de época. Dessa queixa nem mesmo o mais precavido dos nossos contemporâneos conseguiria se safar! Afinal, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche já declarava ser inevitável que todos os grandes espíritos estivessem ligados aos seus tempos por meio de algum preconceito.
§ 7º Mesmo assim, Morton ressalta que ainda temos muito a ganhar com a cuidadosa leitura desses textos que hoje são tidos por controversos. Segundo o autor, esse ganho se traduziria em um exercício de humildade a partir do qual o exame de um passado literário nos tornaria capazes de refletir sobre as limitações das práticas artísticas e dos costumes morais da nossa própria época.
§ 8º Em um diálogo de 2017 com o psicólogo Jordan Peterson, Camille Paglia faz uma observação complementar ao ressaltar que um texto não resiste ao tempo por imposição de uma elite cultural, mas por meio do seu constante uso pela tradição, enquanto referência à prática literária corrente. Ou seja, aquilo que nós consideramos grande arte é determinado pelas necessidades dos próprios artistas.
§ 9º Ao adotar-se o raciocínio de Paglia, chega-se à conclusão de que a permanência de autores como Homero e Shakespeare no cânone literário não seria consequência de uma conspiração do poder político e acadêmico para privilegiar determinados escritores em detrimento de outros. Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história.
§ 10. Homero é um dos autores mais relevantes do cânone pelo fato de suas criações servirem de inspiração para escritores outros de épocas diversas. Desde os dramaturgos da antiga Grécia — como Ésquilo, que disse que suas peças não passavam de migalhas do banquete homérico — e Virgílio, o romano, até escritores modernos como o poeta e historiador britânico Robert Graves, autor de “A Filha de Homero”, e a escritora canadense Margaret Atwood com o seu “The Penelopiad”.
§ 11. Da mesma forma, Shakespeare teria influenciado outros escritores desde o seu advento, passando pelo teatro alemão do século 18 — por exemplo, tragédias históricas como “Götz von Berlichingen” e “Egmont” de Goethe — até o cinema japonês do século 20, em filmes do diretor Akira Kurosawa — tanto “Trono Manchado de Sangue” como “Ran”, cujos roteiros são adaptações dos dramas “Macbeth” e “Rei Lear”.
§ 12. Compreender essa teia de influências e associações é uma das tarefas mais difíceis do professor e crítico literário, cuja função mais ampla é a de oferecer ao público uma chave de leitura que seja simultaneamente plausível e criativa, sem que para isso tenha a necessidade de extrapolar os limites de uma obra — ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas —, como se a própria obra e o seu contexto histórico não fossem capazes de despertar a fome literária do leitor.
§ 13. Desde o começo do meu doutorado, reflito sobre a melhor forma de ler e ensinar os clássicos da literatura alemã. Assim, durante o período em que me dedico aos alunos, como nas horas em que desenvolvo a minha tese, busco aplicar uma síntese das duas estratégias abordadas neste pequeno ensaio, quais sejam: a reconstrução de um contexto histórico específico na tentativa de emprestar uma ordem ao emaranhado de influências artísticas e filosóficas necessárias para o entendimento de autores como Goethe.
§ 14. Nesse afã, dedico a maior parte das minhas horas de estudo à versão de Goethe de “Ifigênia em Táuris”. Exercício em que procuro entender o contexto histórico de cada uma das versões dessa tragédia, ao mesmo tempo em que traço uma narrativa mais ampla sobre a recepção do texto original de Eurípides na Alemanha do século 18.
§ 15. Contudo, atento aos detalhes da versão de Goethe, que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época, buscando ressaltar as qualidades morais atribuídas à protagonista, cujas atitudes revelam um importante questionamento sobre a relação entre gênero e autonomia na obra do escritor alemão.
§ 16. Goethe é um dos muitos autores clássicos arbitrariamente criticados pelas suas representações do feminino. No entanto, quanto mais tempo dedico ao estudo da sua obra, mais noto que determinadas críticas não fazem o menor sentido.
§ 17. Isso prova que, muitas vezes, a reputação de um escritor canônico entre os nossos contemporâneos apenas revela a inabilidade de nossa época em reconhecer os raros, porém eficientes, esforços do passado na promoção das liberdades que hoje consagramos.
§ 18. Não se trata de uma simples coincidência que Goethe tenha sido uma importante referência literária para a escritora George Eliot, autora de “Middlemarch”, ou que Elena Ferrante, na atualidade, tome uma citação de “Fausto” como a epígrafe de “A Amiga Genial”, o primeiro dos quatro volumes da ilustre série napolitana — uma espécie de “bildungsroman” (romance de formação ou amadurecimento) para os nossos tempos, sobre a busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade!
ALBURQUEQUE, Juliana de. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2019.