Texto I
Em janeiro do ano passado, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
criou um grupo de 15 pessoas para elaborar proposta
sobre o futuro da educação no mundo. A diferença dessa
nova proposta para outras duas, décadas atrás, é o
espírito do tempo atual. Os relatórios anteriores foram
elaborados em momentos de evolução, sem as rupturas
que temos em marcha no século 21. Nos debates do
grupo, do qual participo, estamos percebendo a
necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo
com o espírito do tempo, as curvas que a história está
fazendo.
Uma mudança diz respeito aos novos recursos
tecnológicos, graças à computação, telecomunicação,
grandes acervos de imagem e som, inteligência artificial,
redes sociais digitais e tudo que permite levar a realidade
para dentro da sala de aula, e fazer o ensinoaprendizagem a distância, de forma remota entre
professores e alunos. O espírito desse tempo permite e
induz à passagem da "aula teatral" — professor e quadro
negro na presença dos alunos — para a "aula
cinematográfica" — professor usando todos os modernos
recursos audiovisuais e computacionais para uma aula
dinâmica, presencial ou não. A escola do futuro não será
apenas um aperfeiçoamento da atual, será uma “nova
escola”. Da mesma forma que, um século atrás, a arte
dramática descobriu o potencial do cinema, levando o
teatro ao mundo inteiro e com uma linguagem que rompia
os limites do palco.
A segunda mudança se refere aos novos conhecimentos
a serem desenvolvidos. Os destinos, dificuldades e
potenciais de cada ser humano ficaram interligados
planetariamente a toda a humanidade. Até pouco tempo
atrás, as ideias de planeta e humanidade eram temas
limitados a astrônomos e filósofos. No espírito do tempo
atual, esses conceitos dizem respeito ao dia a dia de
cada pessoa: os alunos do futuro viverão na Terra, não
apenas em um país, e a preocupação deles deve ser com
toda a raça humana, além de família e compatriotas.
O ensino deverá tratar dos problemas que ameaçam a
humanidade: mudanças climáticas; abismo da
desigualdade que está quebrando a semelhança da
espécie humana; pobreza e desemprego estrutural;
riscos e vantagens da inteligência artificial; o
entendimento do papel da ciência na construção de um
mundo melhor e mais belo; a prática da solidariedade
com todos os seres humanos, especialmente os pobres
nacionais, os refugiados apátridas, os migrantes e todos
os que sofrem exclusão e discriminação; o valor da
diversidade social e natural, com respeito às
especificidades.
O terceiro desafio é fazer o ensino-aprendizagem em
sintonia com o rápido avanço do conhecimento, que
evolui e se transforma a cada instante. Essa velocidade
faz obsoletos os conhecimentos, as profissões, a concepção de escola e os métodos pedagógicos,
inclusive a posição relativa entre professor e aluno. A
educação do futuro exige que o aprendizado seja
contínuo, não termine ao longo da vida de uma pessoa;
diplomas devem ser provisórios. O verbo aprender deve
ser usado no gerúndio, sempre aprendendo e
aprendendo sempre.
É um desafio também, sobretudo no ensino superior, sair
das algemas do conhecimento por disciplina e adotar o
conhecimento multidisciplinar, única forma de avançar
para novas ciências que estão nascendo nas fronteiras
das atuais e de trazer os problemas da realidade para
dentro do processo de ensino-aprendizagem.
Especialmente os problemas éticos que desafiam a
humanidade e as possibilidades da educação de base
para construir o futuro, ao formar as novas gerações.
O quinto desafio é a coerência entre o conteúdo
humanista e planetário com o compromisso político de
assegurar o direito de cada criança desenvolver seu
potencial, desde a primeira infância, independentemente
da nacionalidade e do status social, da renda e do
endereço; cada criança do mundo tratada como filha da
humanidade, com o mesmo direito à educação para seu
próprio benefício e para que seu talento beneficie sua
família, sua vila, seu país e toda a humanidade. A
educação de qualidade — respirar conhecimento — deve
ser um direito tão humano quanto aspirar oxigênio para
estar vivo, aprendendo ao longo de toda a vida. Ninguém
deixado para trás na alfabetização para a
contemporaneidade: falar, escrever e ler bem seu idioma,
falar pelo menos um outro idioma, adquirir um ofício,
conhecer história e geografia, filosofia e as bases da
matemática e das ciências, ser capaz de usar as
ferramentas do mundo moderno. Certamente que o
espírito do tempo exige um plano mundial para dar apoio
à educação das crianças do mundo inteiro e com uma
linguagem que rompia os limites do palco.
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/07/4939914-
cristovam-buarque-o-espirito-do-tempo-e-a-educacao.htm