Posso pensar que os PCNs não inauguram um novo objeto para o ensino de português, eles mesmos se veem como uma
espécie de síntese do que foi possível aprender e avançar nessas três últimas décadas a partir de questões do tipo: para que
ensino o que ensino? Para quem se ensina? Em que ordem social isto acontece? A quais exigências da sociedade a escola
pretende responder?
A discussão sobre o ensino de língua portuguesa, nos PCNs, como também nas propostas curriculares estaduais produzidas
nos anos 80, é orientada por fatores de caráter social, “externo” à própria disciplina como, por exemplo, a presença na escola
de uma clientela diferente daquela que veio frequentando os bancos escolares até a década de 60; a questão da ordem social
assumida a partir da década de 80 após anos de ditadura; e, pela constatação mais uma vez do fracasso da escola no
enfrentamento de problemas relacionados à evasão, repetência e analfabetismo. No bojo das discussões um discurso voltado
para uma “pedagogia sociológica”, cuja vertente dialético-marxista enfoca as contradições da escola democrática, seu desejo
de transformação e de superação em busca da emancipação das camadas populares da sociedade.
Por outro lado, o ensino de língua portuguesa passa a ser repensado por razões internas (inerentes ao desenvolvimento
de novos paradigmas no campo das ciências e da linguagem) que orientam a discussão a partir de conhecimentos sobre quem
ensina e quem aprende; sobre como se ensina e como se aprende; sobre linguagem e língua. Pesquisas na área interdisciplinar, como psicologia, sociologia, linguística, psicolinguística e sociolinguística, desencadeiam um esforço de revisão das práticas de
ensino da língua, na direção de orientá-las para a ressignificação das noções de erro construtivo, de conflito cognitivo, de
conhecimento prévio que o aluno traz para a escola, de construção do conhecimento de natureza conceitual através da
interação com o objeto etc. Por outro lado, o campo das ciências da linguagem (em substituição ao estruturalismo e teoria da
comunicação) aponta para a concepção da linguagem como forma de interação mediadora e constitutiva das relações sociais,
para a percepção das diferenças dialetais, para a necessidade de se ensinar a partir da diversidade textual, para adoção das
práticas de leitura e produção e de análise linguística em suas condições de uso e de reflexão como conteúdo da disciplina.
Nesse discurso assumido pelos PCNs pode-se ler uma crítica velada e explícita ao ensino tradicional, entendido como
aquele que desconsidera a realidade e os interesses dos alunos, a excessiva escolarização das atividades de leitura e de escrita,
artificialidade e fragmentação dos trabalhos, a visão de língua como sistema fixo e imutável de regras, o uso do texto como
pretexto para o ensino da gramática e para a inculcação de valores morais, a excessiva valorização da gramática normativa e
das regras de exceção, o preconceito contra as formas de oralidade e contra as variedades não padrão, o ensino descontextualizado da metalinguagem apoiado em fragmentos linguísticos e frases soltas. Nessa perspectiva a finalidade do ensino de língua
portuguesa, segundo o documento, deixa de ser exclusivamente o desenvolvimento de habilidades de leitura e de produção ou
o domínio da língua escrita padrão, para passar a ser o domínio da competência textual além dos limites escolares, na solução
dos problemas da vida como no acesso aos bens culturais e à participação plena no mundo letrado.
(FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. Ainda uma Leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Disponível em:
https://www.fe.unicamp.br/alle/textos/ Acesso em: agosto de 2024. Fragmento.)