O papel fundante da memória dos mortos para o
desenvolvimento da cultura teve algo de acidental, pois o
mecanismo poderoso de propagação dos hábitos, das ideias e dos
comportamentos dos ancestrais foi o afeto. A lembrança de quem
partiu, bem visível nos chimpanzés, que se enlutam quando
perdem um ente querido, tornou-se uma marca indelével de nossa
espécie. Isso não aconteceu sem contradições, é claro. Com o
amor pelos mortos surgiu também o medo deles. Do Egito a
Papua-Nova Guiné, em distintos momentos e lugares,
floresceram rituais para neutralizar, apaziguar e satisfazer aos
espíritos desencarnados. Na Inglaterra medieval, temiam-se tanto
os mortos que cadáveres eram mutilados e queimados para se
garantir sua permanência nas covas. Entre os Yanomami, a
queima dos pertences é uma parte essencial dos rituais fúnebres.
A Igreja Católica até hoje considera que os restos mortais dos
santos são valiosas relíquias religiosas.
A propagação dos memes de entidades espirituais foi,
portanto, impulsionada pelos afetos positivos e negativos em
relação aos mortos. Foi a memória das técnicas e dos
conhecimentos carregados pelos avós e pais falecidos que
transformou esse processo em algo adaptativo, um verdadeiro
círculo virtuoso simbólico. Não é exagero dizer que o motor
essencial da nossa explosão cultural foi a saudade dos mortos. A
crença na autoridade divina para orientar decisões humanas levou
a um acúmulo acelerado de conhecimentos empíricos sobre o
mundo, sob a forma de preceitos, mitos, dogmas, rituais e
práticas. Ainda que apoiada em coincidências e superstições de
todo tipo, essa crença foi o embrião de nossa racionalidade.
Causas e efeitos foram sendo aprendidos pela corroboração ou
não da eficácia dos símbolos religiosos.
Sidarta Ribeiro. O oráculo da noite: a história da ciência e do sonho.
São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 325 (com adaptações).