DOIS COLUNISTAS E A NORMA CULTA
Sírio Possenti
Publicado em 17 de março de 2016
Não me lembro de ter ouvido ou lido alguma coisa de Tostão sobre língua, gramática.
Esses troços de que os que não são do ramo falam tanto. Mas, salvo
engano, andou emitindo juízo bem precário sobre a expressão “correr atrás do
prejuízo”, que considerou errada (“ninguém corre atrás do prejuízo” sentenciou,
se bem que, como psicanalista, deve ter visto muito disso por aí) e que Cipro
Neto comemorou (achei no Google).
Está lá: “No último domingo, Tostão fez deliciosa “análise crítica de clichês do
futebol”. Um deles (“Vamos correr atrás do prejuízo”) recebeu a seguinte observação:
“Se o time está perdendo, tem de correr atrás do lucro”. Já vi muita gente
boa defender a legitimidade dessa construção (“correr atrás do prejuízo”), com o
argumento de que o uso lhe dá razão. O estranho é que ninguém diz que corre
atrás do fracasso, do insucesso, da tristeza. O que se diz é que o time corre atrás da medalha, da vitória, da classificação. Por que diabos, então, correr atrás do
prejuízo?”.
Idiomatismos, Pasquale! Os idiomatismos e expressões feitas não têm sentido
literal. São como os provérbios ou outras expressões do tipo “enfiar o pé na jaca”
ou a “a vaca vai pro brejo”. E “risco de vida”, que muita gente corrigiu para “de
morte”, sob empurrões da Globo.
Tostão quis corrigir a cultura. Comentou outras expressões (como “marcar sob
pressão”), que podem cansar, mas não veiculam doutrinas erradas. Aliás, por
que todos deveriam correr atrás do lucro? Nem Tostão faz isso, que se saiba.
Tais expressões exigem boa interpretação: corre-se atrás do prejuízo não para
ficar com ele, para aumentá-lo, mas para acabar com ele, para caçá-lo, para
anulá-lo.
Mas, em outro domínio, Tostão fornece bons dados para os analistas. No dia
13/03/2016, escreveu: “O amigo e médico Ciro Filogeno sugere, o que concordo…”
e, logo depois, “… que nos empates por 0 a 0 os dois times não deveriam
ganhar pontos, o que discordo…”.
Um professor meio cego e pouco lido diria que Tostão errou. O argumento é
sempre o mesmo: se é “concordo com”, então é “com o que (ou “com quem”)
concordo”; e se é “discordo de”, então é “de que discordo”.
Mas isso não é verdade. Tostão apenas escreveu segundo outra regra (uma hora
dessas vou ficar de caderninho na mão e anotar todos os casos de novas adjetivas
que ouço em rádio e TV, já que ninguém mais usa as antigas, especialmente
com “cujo”).
As frases de Tostão atestam uma tendência poderosa do português, que é a de
fazer orações adjetivas sem a preposição (tem sido chamada de cortadora): num
dos casos aqui mencionados saiu “com”, no outro, saiu “de”.
Tostão é obviamente uma pessoa culta, representante no português culto falado
e escrito no Brasil, que, entre outras instituições, a escola deveria encampar.
(Isso não significa que não se pode ou não se deve empregar a forma tradicional,
ou mesmo que ela não seja ensinada. Sem emprego pode ser um bom índice de
escrita mais consciente, ou monitorada, o que é bom. É bom, mas não é a única
alternativa correta).
Já Ferreira Gullar, ferrenho defensor da gramática (mas eu duvido que a estude!)
que a professorinha lhe ensinou (devia ser bem fraquinha), como repetidamente
insiste em dizer, escreveu no mesmo dia em sua coluna “que preferem abrir o
jogo do que pagar a culpa…” (está avaliando as delações premiadas como o
faria um taxista ouvinte da CBN).
Não quero dizer que a escrita de Ferreira Gullar tem problemas (pelo contrário:
este é seu lado bom), como provavelmente diriam os que repetem “se é concordo
com, então é com o que concordo”. Quando eu estava no então quinto ano,
antes do então ginásio, já estudava uma lista de palavras que incluíam “preferir
a” em vez de “preferir (mais) do que”. Pois a construção dita “errada” está cada
vez mais viva e é cada vez mais empregada por pessoas cultas (vou tentar ouvir
o Merval Pereira, por mais difícil que isso seja). Portanto, é cada vez mais “normal”.
As relativas de Tostão (que são de todos, aliás) e a regência de Ferreira Gullar
não deveriam mais implicar perda de pontos nas redações, nem serem objeto de
provas “objetivas”.
PS 1 – a famosa coluna de Tostão que Pasquale comentou está em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk0201200009.htm.
Tostão questiona, de fato, uma lista grande de clichês. Vejam o segundo da lista:
“Empatar fora de casa é bom.” Em um campeonato que a vitória vale três pontos,
empatar é sempre ruim. Repararam em “Em um campeonato que a vitória…”?
Também aqui “falta” uma preposição. É sempre a mesma regra!
Claro que ninguém critica a gramática de Tostão (nem o fez Pasquale, que vivia
disso). Um indício de que (“que”, diria o colunista) pertence à “elite intelectual”,
cuja gramática é, portanto, culta. Ele diria “cuja”? Duvido.
PS 2 – Da tira Júlio & Gina de segunda, dia 14/03 (Folha de S. Paulo): – Você
não odiava TV? – Achei uma coisa que eu gosto.
Lá se foi mais uma preposição numa relativa. Minha aposta é que ninguém percebe.
Ref.: https://blogdosirioblog.wordpress.com/page/2/ [adaptado]