Leia o texto de Rubem Braga, escrito em novembro de 1944,
quando o autor era correspondente de guerra, para responder à questão.
A procissão de guerra
Corremos pela estrada, mas o jipe tem de ir lentamente.
Em sentido contrário, um pesado e lento comboio de
enormes caminhões avança – e em nossa frente, na mesma
direção em que vamos, se arrasta outro.
É impossível passar. As estradas da Itália são boas, mas
são estreitas. É preciso ter paciência.
A esta hora, em milhares de outras estradas do mundo os
caminhões estão assim, em comboios, rodando para a guerra
ou para a retaguarda.
É a procissão da guerra.
Tu segues com uma caneta-tinteiro e um pedaço de chocolate no bolso. Aquele leva caixas de comida, o outro caixas
de munição, óculos para ver o inimigo, armas para matá-lo,
botinas, braços e pernas, mapas, cérebros, cartas de mulheres
distantes, saudosas ou não, com retratos de crianças, capotes
– uma guerra se faz com tudo, exige tudo, engole tudo.
Entramos em uma cidade e durante 20 minutos avançamos por ruas onde não há uma só casa em pé.
Da primeira vez, confrangem essas ruas de casas
estripadas que mostram as vísceras de suas paredes íntimas,
num despudor de ruína completa.
Nesses montes de escombros estão soterrados os reinos íntimos, as antigas ternuras, as inúteis e longas discussões domésticas – e, às vezes, num pedaço de parede que
se equilibra entre ruínas, aparece, num ridículo macabro, a
legenda da última fanfarronada fascista: Vincere!*
Avançamos entre os montões de tijolos, pó e traves
quebradas.
Agora isso já não interessa aos nossos olhos: essa desgraça é monótona. Entretanto, nessa cidade devastada pela
maldição da guerra, onde nem os ratos se arriscam mais, há
alguma coisa que chama a atenção e comove.
É um arbusto que tombou entre os escombros – mas em
meio à montoeira de entulho ainda tenta sobreviver, e permanece verde, sugando, por escassos canais, debaixo da terra
calcinada, alguma seiva rara.
E essa pequena árvore que se recusa a morrer, essa
pequena árvore patética, é a única nota de humanidade do
quarteirão arrasado.
Prossegue a nossa procissão e, afinal, nosso jipe se
liberta e corre entre as campinas.
(Coleção melhores crônicas: Rubem Braga.
Seleção de Carlos Ribeiro. Global, 2013. Adaptado)
*“Vencer”, frase dita por Benito Mussolini.