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Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
A palavra encontradíssima tem
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
Os termos sublinhados estabelecem, respectivamente, noção de
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
I. deve ser considerada no seu sentido denotativo. II. indica como a linguagem pode dissimular fatos. III. suaviza atitudes de desrespeito à vida das vítimas. IV. engloba a história de vidas estupidamente destruídas.
É CORRETO o que se afirma APENAS em
Quem está perdido, a bala ou nós?
A linguagem é perigosa. A primeira vez que uma criança foi abatida à bala em algum beco pululante de uma metrópole brasileira e nós decidimos arquivar sua morte na gaveta “bala perdida”, seguindo com o dia sem pensar mais no caso, perdemos parte da humanidade.
Difícil precisar quando foi esse ato inaugural. “Bala perdida” é uma expressão antiga, talvez tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre deram um jeito de se extraviar do alvo, indo traçar retas fatais no território do acaso.
Menos antiga é a imensa probabilidade de que uma reta dessas, inapelável feito um deus indiferente, intercepte um menino jogando bola na rua ou uma menina debruçada na janela do quarto e sussurre em seu ouvido: acabou.
Não que algo parecido não pudesse acontecer antes de nossas metrópoles começarem a inchar, latejar e apodrecer, mais de meio século atrás.
Podia acontecer, mas era evento raríssimo enquanto não havia essa guerra sem fim entre polícia e bandidos, a fronteira entre os dois lados muitas vezes difusa — e um monte de gente no meio.
Falta treinamento, perícia, profissionalismo? Bom, ainda que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, nem assim deixaria de haver bala perdida. E olha que ainda não falamos das “balas perdidas” que são puro cinismo, eufemismo de chacina, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.
Mentirosa ou cândida, é estranha a preferência da tal bala por crianças. Seria por que estas são serelepes e teimam em se intrometer em assunto de gente grande, aonde não foram chamadas?
Ou não, nada disso, pessoas de todas as idades morrem assim — e nós é que, viciados em sentimentalismos, só damos importância ao banal quando ele se abate sobre o futuro?
Sim, a bala perdida nos desumaniza. Começa que não é perdida coisa nenhuma. É supercentrada, segura de si. Feita para matar, vai lá e mata. Perdida, a bala?
Mesmo quando erra e não mata nem fere ninguém, e acaba encravada em alguma parede ou tronco de árvore aleatório, nem assim é o caso de dizer que se perdeu. Abriu um buraco, não abriu?
Pois então. Negócio de bala é abrir buraco, mais até do que matar. Claro que abrir buraco é muito bom quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que a intenção do atirador seja, sei lá, pôr abaixo uma porta trancada; bala funciona para isso também.
E pode acontecer, lógico, que alguém queira arrombar a porta para em seguida matar uma pessoa que está do outro lado; acontece, nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitos cartuchos, razão pela qual tantos especialistas recomendam a pistola automática.
A bala que se diz perdida está encontradíssima, zunindo por aí como foi projetada para fazer, esticando um fio que pode cortar destinos feito linha de pipa braba com cerol. Perdidos estão os outros; perdidos estamos nós.
Perdido, muito, está quem disparou a bala. É bem difícil que a pessoa esteja andando na rua e, ao esbarrar sem querer em seu revólver, veja balas saírem loucas pelo mundo. Mais comum é que meta o dedo no gatilho para onde o nariz aponta e seja o que Deus quiser — e assim o atirador se torna perdido.
Claro que mais perdida ainda está a pessoa que a bala encontra, mas no fim do tiroteio perdidos estamos nós, todos nós, que deixamos que a história de tantas vidas estupidamente destruídas seja insultada por uma expressão covarde e imoral.
(RODRIGUES, Sérgio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 ago. 2023. Cotidiano, p.
3. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/08/quem-esta-perdido-a-bala-ou-nos.shtml. Com adaptações).
I. O autor, por meio da frase “A linguagem é perigosa.”, antecipa sua visão objetiva acerca dos fatos.
II. O autor sustenta a opinião de que o uso da expressão “bala perdida” indica perda de humanidade.
III. O autor sugere que conflitos entre policiais e bandidos contribuem para o aumento de vítimas de “bala perdida”.
É CORRETO o que se afirma em
A recuperação do meio ambiente degradado pela mineração, a partir da determinação constitucional vigente, é de responsabilidade PRIMÁRIA
A competência do Município em matéria ambiental, conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, alcança:
A responsabilidade pelo dano ambiental pode ser classificada no seu regime como:
Segundo o Código de Defesa do Consumidor, é INCORRETO afirmar:
NÃO corresponde a um dos princípios básicos da Política Nacional de Relações de Consumo:
Em face de tributo sujeito à homologação, a empresa Pedreira Ltda. declara ao Fisco tributos no valor de R$ 10.000,00. Todavia, em virtude de grave crise econômico-financeira, a empresa acaba não efetuando o pagamento do valor na data do vencimento. Após 2 anos do vencimento, o Fisco inscreve o valor em dívida ativa. Após 6 anos do vencimento, Pedreira Ltda. confessa o débito, aproveitando vantagem tributária outorgada pela legislação, com abatimento do valor devido em 50%, e inicia o processo de parcelamento em 10 parcelas mensais. A empresa paga 6 parcelas corretamente e deixa de pagar as demais. O Fisco rescinde o parcelamento e a Fazenda Pública promove a ação de execução fiscal, visando à cobrança do pelo valor remanescente, considerando o abatimento outorgado pela legislação do parcelamento.
Nesse contexto, nos termos do Código Tributário Nacional e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pode-se afirmar que a Fazenda Pública está:
Tião da Silva é devedor de determinado tributo, e obtém o seu parcelamento e vem efetuando o pagamento conforme deferido. Apesar disso, sofre processo de execução fiscal para a cobrança do referido tributo. Nos embargos à execução fiscal, Tião poderá alegar:
De acordo com o Código Tributário Nacional, é CORRETO afirmar que se aplica, retroativamente, a lei tributária na hipótese de:
Xenônio da Silva é proprietário de um sítio, local destinado ao lazer, na área de expansão urbana, com base em lei municipal específica, na região de Lavras. A área é dotada de rede de abastecimento de água, rede de iluminação pública e esgotamento mantidas pelo município, embora não existam próximos escolas e hospitais públicos.
Neste caso, é CORRETO afirmar que Xenônio deve pagar o seguinte imposto:
Beta Ltda. teve sua falência decretada em 11/01/2023. Beta possuía um imóvel hipotecado ao Banco Pechincha S/A, em garantia de dívida no valor de R$ 2.000.000,00. O imóvel está avaliado em R$ 2.200.000,00. A Fazenda Pública Municipal tem créditos a receber de Beta Ltda. relacionados ao Imposto sobre Serviços não pago em virtude de serviços prestados em 03/01/2021. Com base no acima exposto, assinale a afirmativa CORRETA:
Nos termos do Código Civil, prescreve: