Leia o texto para responder à questão.
A memória dos que envelhecem (e que transmitem aos
filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos
fatos que tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com
que ele estabelece contatos, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico
na construção da tradição familiar. Esse folclore jorra e vai
vivendo do contato do moço com o velho — porque só este
sabe que existiu em determinada ocasião o indivíduo cujo
conhecimento pessoal não valia nada, mas cuja evocação é
uma esmagadora oportunidade poética. Só o velho sabe daquele vizinho de sua avó, há muita coisa mineral dos cemitérios, sem lembrança nos outros e sem rastro na terra — mas
que ele pode suscitar de repente (como o mágico que abre a
caixa dos mistérios) na cor dos bigodes, no corte do paletó,
na morrinha do fumo, no ranger das botinas de elástico, no
andar, no pigarro, no jeito — para o menino que está escutando e vai prolongar por mais cinquenta, mais sessenta anos a
lembrança que lhe chega, não como coisa morta, mas viva
qual flor olorosa e colorida, límpida e nítida e flagrante como
um fato presente.
E com o evocado vem o mistério das associações trazendo a rua, as casas antigas, outros jardins, outros homens,
fatos pretéritos, toda a camada da vida de que o vizinho era
parte inseparável e que também renasce quando ele revive
— porque um e outro são condições recíprocas. Costumes
de avô, responsos de avó, receitas de comida, crenças, canções, superstições familiares duram e são passadas adiante
nas palestras de depois do jantar; nas das tardes de calor,
nas varandas que escurecem; nas dos dias de batizado, de
casamento, de velório.
(Pedro Nava. Baú de Ossos. São Paulo: Cia das Letras, 2012)