A família humana
Não acho que tudo tenha piorado nos dias atuais. Nunca
fui saudosista. Prefiro a comunicação imediata pela internet a
cartas que levavam meses. Gosto mais de trabalhar no
computador do que de usar a velha máquina de escrever (que
tinha lá seu charme). No whats ou outros, falo instantaneamente com amigos e familiares aqui perto, do outro lado
do mundo – os afetos se multiplicam, se consolidam, circulam
mais emoções. Nossa qualidade de vida melhorou em muitas
coisas, mas serviços essenciais entre nós andam deteriorados,
uma vasta parcela da humanidade ainda vive em nível de
miséria.
São as contradições inacreditáveis de um sistema onde
cosmólogos investigam espaços insuspeitados, cada dia
trazendo revelações intrigantes, mas ainda sofre e morre
gente nos corredores de hospitais sobrecarregados, milhões
de crianças morrem de fome, outros milhões nunca chegam
à escola, ou brincam diante de barracos com barro feito de
água e esgoto.
Minhas repetições são intencionais, aqui, nos romances,
até nos poemas. Retorno a temas sobre os quais eu mesma
tenho incertezas. Que envolvem antes de mais nada ética,
moralidade, confiança. Decência: pois é neles que eu aposto,
nos decentes que olham para o outro – que somos todos nós,
do gari ao intelectual, da dona de casa à universitária, dos
morenos aos louros de olhos azuis – com atenção e respeito.
Estudos recentes sobre história das culturas revelam
dados sobre tempos em que a parceria predominou sobre a
dominação: entre povos, entre grupos, entre pessoas. Mas
o mesmo ser humano que busca o amor anseia pela dominação nas relações pessoais, internacionais, de gênero, de
idade, de classe.
E se tentássemos mais parceria? Na verdade não acredito
muito nisso, a não ser que a gente dê uma melhorada em si
mesmo. É possível que em algumas décadas, ou mais, a
miscigenação será generalizada, superados os conflitos raciais
às vezes trágicos. Teremos uma miscigenação densa de cores,
formas, idiomas e culturas.
Origem, dinheiro ou tom de pele vão interessar menos
do que caráter e lealdade, a produtividade e competência
menos do que a visão de mundo e a abertura para o outro,
a máquina importará tanto quanto o sonho, a hostilidade
não vai esmagar a esperança, e não teremos de dominar o
outro tentando construir uma civilização.
Talvez eu hoje tenha acordado feito uma visionária ingênua: não é inteiramente ruim, isso se chama esperança de que
um dia predomine, sim, a família humana. “E aí?”, perguntarão.
“Sem conflito, sem cobiça, sem alguma opressão e alguma
guerrinha, qual a graça?”
Aí, não vamos bocejar como anjos entediados, mas
crescer mais, e mais, em caráter, sabedoria, harmonia, e –
por que não? – algum tipo de felicidade.
(LUFT, Lya. A família humana.Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.
com.br/colunistas/lya-luft/noticia/2019/06/a-familia-humana-cjx6p12
mq01ro01o9obgwdbq6.html. Acesso em: 06/04/2020.)