A lua quadrada de Londres
Eu vinha voltando para casa, dentro da noite de Londres. Uma noite fria, nevoenta, silenciosa – uma noite de
Londres. Noite de inverno que começa às quatro horas da tarde e termina às oito da manhã. Noite de navio perdido em
alto-mar, de cemitério, de charneca, de fim de ano, de morro dos ventos uivantes. Noite de vampiros, de lobisomens,
de fantasmas, de assassinos, de Jack, o Estripador. Eu vinha vindo e apressava o passo, querendo chegar depressa, antes
que aquela noite tão densa me dissolvesse para sempre em suas sombras. De espaço a espaço, a luz amarelo-âmbar dos
postes pontilhava a rua com seu pequeno foco, como olhos de pantera a seguir-me os passos na escuridão.
Foi quando a neblina se esgarçou, translúcida, e a lua apareceu.
Uma lua enorme, resplendente, majestosa – e quadrada.
Os meus olhos a fitavam, assombrados, e eu não podia acreditar no que eles viam. Quadrada como uma janelinha
aberta no céu. Mas amarela como todas as luas do mundo, flutuando na noite, plena de luz, solitária e bela.
As luas de Londres... Ah, Jayme Ovalle, Manuel Bandeira! A lua de Londres era quadrada!
Pensei estar sonhando e baixei os olhos humildemente, indigno de merecê-la, tendo bebido mais do que
imaginava. Entrei em casa bêbado de lua e fui refugiar-me em meu quarto, refeito já do estranho delírio, no ambiente
cálido e acolhedor do meu tugúrio, cercado de objetos familiares.
Mas foi só chegar à janela, e lá estava ela, dependurada no céu em desafio: uma lua deslumbrante que a neblina
não conseguia ofuscar, cubo de luz suspenso no espaço, de contornos precisos, nítido em seus ângulos retos, a
desafiar-me com seu mistério. A lua quadrada de Londres!
Evitei olhá-la outra vez, para não sucumbir ao seu fascínio. Corri as cortinas e fui dormir sob seus eflúvios – enigma
imemorial a zombar de todas as astronomias através dos séculos, da mais remota antiguidade aos nossos dias, e
oferecendo unicamente a mim a sua verdadeira face. É possível que um sábio egípcio, há cinco mil anos, do alto de uma
pirâmide, a tenha vislumbrado uma noite e tentado perquirir o seu segredo. É possível que em Babilônia um cortesão de
Nabucodonosor se tenha enamorado perdidamente de uma princesa, na moldura quadrada de seus raios. É possível
que na China de Confúcio um mandarim se tenha curvado reverente no jardim, entre papoulas, sob o império de seu
brilho retilíneo. É possível que na África, numa clareira das selvas, um feiticeiro da tribo lhe tenha oferecido em
holocausto a carcaça sangrenta de um antílope. É possível que nos mares gelados do Norte um viking tenha há 12 séculos levantado os olhos sob o elmo de chifres, e contemplado aquela surpreendente forma geométrica, procurando
orientar por ela o seu bergantim. É possível que na Idade Média um alquimista tenha aumentado, sob a influência de
sua radiância quadrangular, o efeito milagroso de um elixir da longa vida. É possível que, no longo dos anos, mais de
uma donzela haja estremecido em sonhos ao receber no corpo a carícia estranhamente angulosa do luar. Mas, nos dias
de hoje, somente a mim a lua se oferecia em toda a sua nudez quadrada. Dormi sorrindo, ao pensar que os astronautas
modernos se preparam para ir à Lua em breve – sem ao menos desconfiar que ela não é redonda, mas quadrada como
uma janela aberta no cosmo – verdade celestial que só um noctívago em Londres fora capaz de merecer.
Lembro-me de uma história – história que inventei, mas que nem por isso deixa de ser verdadeira. Era um
marinheiro dinamarquês, de um cargueiro atracado no porto do Rio de Janeiro por uma noite apenas. Saíra pela cidade
desconhecida, de bar em bar, e vinha voltando solitário e bêbado pela madrugada, quando se deu o milagre: nas sujas
águas do canal do Mangue, viu refletida uma claridade difusa – ergueu os olhos e viu que as nuvens se haviam rasgado
no céu, e o Cristo surgira para ele, de braços abertos, em todo o seu divino esplendor. Fulminado pela visão, caiu de
joelhos e chorou de arrependimento pela vida de pecado e impenitência que levara até então. De volta à sua terra,
converteu-se, tornou-se místico, acabou num convento. E anos mais tarde, depois de uma vida inteira dedicada a Deus,
o monge recebe a visita de um brasileiro. Aquele homem era da cidade em que se dera o milagre da sua conversão.
– O que o senhor viu foi a estátua do Corcovado – explicou o carioca.
Não diz a história se o religioso deixou de sê-lo, por causa da prosaica revelação. Não diz, porque me eximo de
acrescentar que, na realidade, depois de viver tanto tempo uma crença construída sobre o equívoco, este equívoco
passava a ser mesmo um milagre, como tudo mais nesta vida.
O milagre da lua quadrada de Londres não me foi desfeito por nenhum londrino descrente do surrealismo
astronômico nos céus britânicos. Bastou olhar de manhã pela janela e pude ver, recortado contra o céu, o gigantesco
guindaste no cume de uma construção, e numa das pontas da armação de aço atravessada no ar, junto ao contrapeso, o
quadrado de vidro que à noite se acende. A minha lua quadrada de Londres.
Quadrado que talvez simbolize todo um sistema de vida, mais do que anuncia a pequena palavra Laig nele escrita,
marca de fabricação do guindaste. De qualquer maneira, os ingleses ganharam, pelo menos na minha imaginação, o
emblema do seu modo de ser, impresso nessa visão de uma noite, que foi a lua quadrada de Londres.
(SABINO, Fernando, 1923-2004 – As melhores crônicas – 14ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2010. 224 p.)