Cace a liberdade
(Martha Medeiros)
Arroz, feijão, bife, ovo. Isso nós temos no prato, é a fonte
de energia que nos faz levantar de manhã e sair para trabalhar.
Nossa meta primeira é a sobrevivência do corpo. Mas como
anda a dieta da alma?
Outro dia, no meio da tarde, senti uma fome me revirando
por dentro. Uma fome que me deixou melancólica. Me dei conta
de que estava indo pouco ao cinema, conversando pouco com
as pessoas, e senti uma abstinência de viajar que me deixou
até meio tonta. Minha geladeira, afortunadamente, está cheia,
e ando até um pouco acima do meu peso ideal, mas me senti
desnutrida. Você já se sentiu assim também, precisando se
alimentar?
Revista, jornal, internet, isso tudo nos informa, nos situa
no mundo, mas não sacia. A informação entra dentro da casa
da gente em doses cavalares e nos encontra passivos, a gente
apenas seleciona o que nos interessa e despreza o resto, e
nem levantamos da cadeira neste processo. Para alimentar a
alma, é obrigatório sair de casa. Sair à caça. Perseguir.
Se não há silêncio a sua volta, cace o silêncio onde ele se
esconde, pegue uma estradinha de terra batida, visite um sítio,
uma cachoeira, ou vá para a beira da praia, o litoral é bonito
nesta época, tem uma luz diferente, o mar parece maior, há
menos gente.
Cace o afeto, procure quem você gosta de verdade, tire
férias de rancores e mágoas, abrace forte, sorria, permita que
o cacem também.
Cace a liberdade que anda tão rara, liberdade de
pensamento, de atitudes, vá ao encontro de tudo que não tem
regra, patrulha, horários. Cace o amanhã, o novo, o que ainda
não foi contaminado por críticas, modismos, conceitos, vá atrás
do que é surpreendente, o que se expande na sua frente, o que
lhe provoca prazer de olhar, sentir, sorver. Entre numa galeria
de arte. Vá assistir a um filme de um diretor que não conhece.
Olhe para a sua cidade com olhos de estrangeiro, como se
você fosse um turista. Abra portas. E páginas.
Arroz, feijão, bife, ovo. Isso me mantém de pé, mas não
acaba com meu cansaço diante de uma vida que, se eu me
descuido, se torna repetitiva, monótona, entediante. Mas nada
de descuido. Vou me entupir de calorias na alma. Há fartas
sugestões no cardápio. Quero engordar no lugar certo. O ritmo
dos meus dias é tão intenso que às vezes a gente se esquece
de se alimentar direito.