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TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
Releia esta sentença, retirada do 9º parágrafo:
A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado (...).
A versão reescrita, em que ocorre a manutenção do sentido original dessa sentença, é:
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
TEXTO 1
O aumento da população mundial e a ameaça
da predação planetária
Marcelo Gleiser*
[1º§]No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager / tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de 40 vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel¹, um “pálido ponto azul” contra a imensidão do espaço. A ideia da imagem foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da Nasa a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. No dia 13 de outubro de 1994, num pronunciamento proferido na Universidade Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado daquela imagem: “Não há melhor demonstração da folia humana do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela deveria inspirar compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única.”
[2º§]Quando medido contra as distâncias cósmicas, contra a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um dentre trilhões. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que exista alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.”
[3º§]A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade. A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos 90 anos, a população mundial cresceu de 2 para 7,5 bilhões de habitantes. Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões no ano 2025. A taxa de crescimento vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a aumentar, mesmo se mais lentamente do que no passado.
[4º§]No final do século 18, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu. Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos – e demonstramos inúmeras vezes no decorrer da história – de resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática. No caso, a otimização e a mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos.
[5º§]Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, há que se descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, áreas pantanosas e outras não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários. Em 2013, só 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total.
[6º§]Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2,5 bilhões de omnívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. A partir desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
[7º§]A estimativa acima leva em conta duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo no nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios ou conflitos sociopolíticos devido ao desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial, causando mudanças climáticas exacerbadas. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável como também regiões costeiras e fluviais extremamente férteis, que podem desaparecer devido à subida do nível do mar e das águas em geral. Outra consequência séria do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, provocando, a um só tempo, perda de mão de obra local e enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa.
[8º§] A menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083. Ainda que estimativas sejam incertas, parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, no qual nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irão exaurir os recursos planetários.
[9º§]A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no do passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continue inalterado tanto no nível governamental quanto no privado. Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas pedagógicas devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos do crescimento populacional desmedido.
[10º§]O conjunto de ações deve incluir o acesso fácil e pouco oneroso a contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; a conversão do consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, a uma dieta orientada à ingestão mais significativa de frutas e vegetais; a viabilização econômica de fontes de energia renováveis, de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; e a adoção, no currículo escolar e na rotina corporativa, de uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global. Toda criança precisa ser educada sobre o planeta em que vive, e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos.
[11º§]Cada um desses passos gera sérias controvérsias e é debatido longamente pelos diversos grupos de interesse, dos governos às lideranças religiosas e comunitárias. Com frequência, eles são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Parece-me que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar as pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres) ou sobre o que se come e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de se proteger o meio ambiente e, de modo mais geral, o planeta (para o benefício do homem e de todas as criaturas que dividem com ele esse espaço) deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda em nossa atitude.
[12º§]Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta da regra ética mais essencial que seguimos todos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate o planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? É muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria, sem dúvida, a existir por bilhões de anos sem a gente. Mas nós não podemos existir sem ela.
*MARCELO GLEISER, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é A Ilha do Conhecimento (Editora Record).
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 02 out.2016, caderno Ilustríssima. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio:
1- Pixel: (aglutinação de Picture e Element, ou seja, elemento de imagem, sendo Pix a abreviatura em inglês para Pictures) é o menor elemento num dispositivo de exibição (como, por exemplo, um monitor), ao qual é possível atribuir-se uma cor. De uma forma mais simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de pixels formam a imagem inteira.
Fonte: www.tecmundo.com.br, acesso em 18 out.2016
Ao assistir as agressões verbais sofridas por Eduardo Cunha por manifestantes na sede da Polícia Federal em Curitiba, lembrei-me de Etorre Perrone, militar e político que empresta seu nome a uma via em Turim. Uma rua classicamente italiana como tantas outras, com construções centenárias cinza-amareladas, varandas e floreiras, não fosse uma pequena placa ao lado da porta de entrada do prédio de número 5, com o nome de Fulvio Croce.
Corria, em 1977, com grande repercussão pública, o processo criminal contra os líderes das brigadas vermelhas, que adotaram uma estratégia para deslegitimar o sistema judicial, considerado, por eles, aliado ao regime e por isso despido da imparcialidade necessária: não constituíam advogados. Mais do que isso. Proibiam com ameaças de morte os defensores nomeados pela justiça de os defenderem em juízo.
Para superar esse impasse, um grupo de advogados decidiu aceitar a convocação da Justiça, com a condição de simplesmente zelar pela observância do devido processo legal, sem apresentação de teses de mérito, para não criar um conflito com a postura dos representados. O principal símbolo desses defensores era o então presidente da “Ordem dos advogados” de Turim.
Croce atuava contra a sua vontade, mas realizava um sacrifício profissional de alto relevo em nome de um dos valores mais caros ao sistema jurídico: a imprescindibilidade do advogado, especialmente no âmbito de um processo criminal, que não concebe a realização da justiça, sem o direito de defesa. E possivelmente também imaginasse o risco que representava aquela decisão, que tragicamente acabou se concretizando. Em 28 de abril, o presidente da Ordine de Torino foi vítima de um atentado das “Brigatti Rossi”, tombando em frente ao número 5 da via Ettore Perrone, após ser atingido por disparos de uma pistola 7.62.
Esse episódio demonstra bem que o direito de defesa serve a propósitos muito superiores ao auxílio jurídico de um cidadão, encargo que por certo já se reveste de alta significação pública, um direito constitucionalmente assegurado como fundamental. O direito de defesa é garantia que transcende o interesse individual de quem ele circunstancialmente protege.
O direito de defesa interessa ao juiz indevidamente acusado de absolver ou condenar alguém por motivação pessoal ou política; tutela quem acusa para se defender de uma imputação de denunciação caluniosa improcedente, e para que os seus erros e excessos, que não raramente ocorrem, possam ser evitados; resguarda o jornalista, injustamente perseguido com violação ao sigilo da fonte; abriga o manifestante, que não pode ter seu legítimo direito de expressão criminalizado.
O direito de defesa é irrenunciável. Não por outro motivo, o Estado tem o dever de oferecer assistência jurídica a quem não possui condições financeiras. E, claro, interessa aos culpados, para que suas responsabilidades e punições sejam corretamente decididas pelo Poder Judiciário, pois essa é uma exigência indeclinável do Estado de Direito. É, portanto, um pressuposto de integridade do sistema judicial.
Deve-se, por isso, rechaçar qualquer forma de estigmatização da atuação legítima dos advogados criminais, pois o leigo em direito deve ter a perfeita compreensão de que a absolvição de uma pessoa culpada ou a prescrição de um crime não são produtos do direito de defesa, mas certamente da atuação precária das agências de investigação ou da negligência do sistema judicial.
O trabalho de todo advogado de defesa serve fundamentalmente para que o Estado, ao processar e punir quem comete um crime, exerça esse poder sem se desviar da legalidade, equiparando-se ao criminoso. Como diz o grande português Rui Cunha Martins, é falsa a ideia de que o Estado de direito seja salvo cada vez que o sistema penal pune um poderoso ou um convicto corrupto; por mais que custe à chamada “opinião”, o Estado de direito só é salvo se um poderoso ou um convicto corrupto são punidos no decurso de um devido processo legal; o contrário disso é populismo puro.
E não há devido processo legal sem respeito efetivo à plenitude do direito de defesa. O contrário disso é, sempre, injustiça.
(BREDA, J. Direito de defesa, como o de cunha, transcende interesse pessoal. Opinião. Folha de São Paulo,
01/11/2016)
Ao assistir as agressões verbais sofridas por Eduardo Cunha por manifestantes na sede da Polícia Federal em Curitiba, lembrei-me de Etorre Perrone, militar e político que empresta seu nome a uma via em Turim. Uma rua classicamente italiana como tantas outras, com construções centenárias cinza-amareladas, varandas e floreiras, não fosse uma pequena placa ao lado da porta de entrada do prédio de número 5, com o nome de Fulvio Croce.
Corria, em 1977, com grande repercussão pública, o processo criminal contra os líderes das brigadas vermelhas, que adotaram uma estratégia para deslegitimar o sistema judicial, considerado, por eles, aliado ao regime e por isso despido da imparcialidade necessária: não constituíam advogados. Mais do que isso. Proibiam com ameaças de morte os defensores nomeados pela justiça de os defenderem em juízo.
Para superar esse impasse, um grupo de advogados decidiu aceitar a convocação da Justiça, com a condição de simplesmente zelar pela observância do devido processo legal, sem apresentação de teses de mérito, para não criar um conflito com a postura dos representados. O principal símbolo desses defensores era o então presidente da “Ordem dos advogados” de Turim.
Croce atuava contra a sua vontade, mas realizava um sacrifício profissional de alto relevo em nome de um dos valores mais caros ao sistema jurídico: a imprescindibilidade do advogado, especialmente no âmbito de um processo criminal, que não concebe a realização da justiça, sem o direito de defesa. E possivelmente também imaginasse o risco que representava aquela decisão, que tragicamente acabou se concretizando. Em 28 de abril, o presidente da Ordine de Torino foi vítima de um atentado das “Brigatti Rossi”, tombando em frente ao número 5 da via Ettore Perrone, após ser atingido por disparos de uma pistola 7.62.
Esse episódio demonstra bem que o direito de defesa serve a propósitos muito superiores ao auxílio jurídico de um cidadão, encargo que por certo já se reveste de alta significação pública, um direito constitucionalmente assegurado como fundamental. O direito de defesa é garantia que transcende o interesse individual de quem ele circunstancialmente protege.
O direito de defesa interessa ao juiz indevidamente acusado de absolver ou condenar alguém por motivação pessoal ou política; tutela quem acusa para se defender de uma imputação de denunciação caluniosa improcedente, e para que os seus erros e excessos, que não raramente ocorrem, possam ser evitados; resguarda o jornalista, injustamente perseguido com violação ao sigilo da fonte; abriga o manifestante, que não pode ter seu legítimo direito de expressão criminalizado.
O direito de defesa é irrenunciável. Não por outro motivo, o Estado tem o dever de oferecer assistência jurídica a quem não possui condições financeiras. E, claro, interessa aos culpados, para que suas responsabilidades e punições sejam corretamente decididas pelo Poder Judiciário, pois essa é uma exigência indeclinável do Estado de Direito. É, portanto, um pressuposto de integridade do sistema judicial.
Deve-se, por isso, rechaçar qualquer forma de estigmatização da atuação legítima dos advogados criminais, pois o leigo em direito deve ter a perfeita compreensão de que a absolvição de uma pessoa culpada ou a prescrição de um crime não são produtos do direito de defesa, mas certamente da atuação precária das agências de investigação ou da negligência do sistema judicial.
O trabalho de todo advogado de defesa serve fundamentalmente para que o Estado, ao processar e punir quem comete um crime, exerça esse poder sem se desviar da legalidade, equiparando-se ao criminoso. Como diz o grande português Rui Cunha Martins, é falsa a ideia de que o Estado de direito seja salvo cada vez que o sistema penal pune um poderoso ou um convicto corrupto; por mais que custe à chamada “opinião”, o Estado de direito só é salvo se um poderoso ou um convicto corrupto são punidos no decurso de um devido processo legal; o contrário disso é populismo puro.
E não há devido processo legal sem respeito efetivo à plenitude do direito de defesa. O contrário disso é, sempre, injustiça.
(BREDA, J. Direito de defesa, como o de cunha, transcende interesse pessoal. Opinião. Folha de São Paulo,
01/11/2016)