Leia um trecho do livro de memórias Balão cativo, de Pedro
Nava, para responder à questão.
Meu tio Modesto e seus amigos Briggs iam frequentemente ao cinema e sempre ao Velo. Eu, ainda adolescente, com eles. Íamos de segunda classe, quinhentos-réis por
cabeça, porque só a gente besta do bairro ia de primeira e
sentava-se espaçadamente em cadeiras tristonhas. Galegos
apatacados*, proprietários, senhoras de chapéu de plumas,
moças preciosas...
Na segunda classe, os intervalos entre as partes do filme
eram uma alegria de amendoins, pipocas, sorvete-iaiá e baleiro-balas. Todos se cumprimentavam, as senhoras davam
adeusinho, os meninos falavam e corriam e subia aquele
ruído de conversas misturado aos pios do flautim, aos gemidos do violino, às bolhas sonoras do saxofone regulados
pela batida do pianista. Do lado de fora, a campainha batia
sem parar chamando para entrar; só calando depois do início
dos filmes cômicos e dos dramas.
Sempre nos sentávamos com todo o cuidado: ponta esquerda o Briggs, depois sua mulher, depois minha tia e, na
ponta direita, meu tio Modesto. Era a defesa contra os bolinas
que infestavam os cinemas da cidade.
Meu tio me instruía a ficar na fila de trás e vigiar os mal-criados que costumavam cutucar as senhoras ou soprar-lhes
o pescoço. Os bolinas eram tratados pelas mais discretas a
golpes de espetos de broche, alfinetes de cabeça e grampos
de chapéu. Isto as discretas, porque as escandalosas davam o
brado. Ao grito de bolina! bolina! respondia o lincha da plateia.
As luzes se acendiam e o canalha era corrido a murros e pontapés, para enfim, moído e sangrando, cair nos braços da polícia
na sala de espera. Essas execuções eram frequentes no Velo.
Terminada a sessão, saíamos devagar para casa. Outro
sorvete na beira da calçada. Os jardins despejavam lufadas
cariocas de jasmim-do-cabo, magnólias e madressilvas. O
céu baixinho, baixinho. A gente, se quisesse, podia segurar
os galhos da treva, baixá-los e colher nas suas pontas as
frutas de prata das estrelas.
(Pedro Nava. Balão cativo. Ateliê Editorial. São Paulo, 2000. Adaptado)
*apatacados: ricos