Então Deus puniu a minha loucura e soberba; e quando
desci ruelas escuras e desabei sobre a aldeia, meus sapatos
faziam irregulares um ruído alto. Sentia-me um cavalo cego.
Perto era tudo escuro; mas adivinhei o começo da praça pelo
perfil indeciso dos telhados negros no céu noturno.
De repente a ladeira como que encorcovou sob meus
pés, não era mais eu o cavalo, eu montava de pé um cavalo
de pedras, ele galopava rápido para baixo.
Por milagre não caí, rolei vertical até desembocar no largo vazio: mas então divisei uma pequena luz além. O homem
da hospedaria me olhou com o mesmo olhar de espanto e
censura com que outros me receberiam – como se eu fosse
um paraquedista civil lançado no bojo da noite para inquietar
o sono daquela aldeia.
Disse-me que, dobrando à esquerda, além do cemitério,
havia casa cercada de árvore; não era pensão, mas às vezes
acolhiam alguém. Fui lá, bati palmas tímidas, gritei, dei murros na porta, ninguém lá dentro murmurou nem mugiu.
“Não há nesta aldeia de cristão um homem honesto que
me dê pouso por uma noite?” Assim bradei, em vão. Então,
como longe passasse um zumbido de aeroplano, me pus a
considerar que o aviador assassino que no fundo das madrugadas arrasa com uma bomba uma aldeia adormecida – faz,
às vezes, uma coisa simpática. Mas reina a paz em todas
estas varsóvias escuras; amanhã pela manhã toda essa gente abrirá suas casas e sairá para a rua com um ar cínico e
distraído, como se fossem pessoas de bem.
Passa na estrada um homem de bicicleta. Para um pouco longe de mim, meio assustado, e pergunta se preciso de
alguma coisa. Digo-lhe que não achei onde dormir, estou
marchando para outra aldeia. Não lhe peço nada, já não
me importa dormir, posso andar por essa estrada até o sol
me bater na cara.
Ele monta na bicicleta, mas depois de alguns metros volta. Atrás daquele bosque que me aponta passa a estrada de
ferro, e ele trabalha na estaçãozinha humilde: dentro de duas
horas tenho um trem.
Lá me recebe pouco depois, como um grão-senhor: no
fundo do barracão das bagagens já me arrumou uma cama
de ferro; não tem café, mas traz um copo de vinho.
Já não quero mais dormir: sala iluminada, onde o aparelho do telégrafo faz às vezes um ruído de inseto de metal,
vejo trabalhar esse pequeno funcionário calvo e triste – e
bebo em silêncio à saúde de um homem que não teme nem
despreza outro homem.
(Rubem Braga. Marcha noturna.
https://cronicabrasileira.org.br, 04.02.1951. Adaptado)