Atenção: Para responder a questão, considere o texto abaixo.
1 Tenho um sonho que, acho, nunca realizarei: gostaria de ter um restaurante. Mais precisamente: gostaria de ser um cozinheiro.
As cozinhas são lugares que me fascinam, mágicos: ali se prepara o prazer. O cozinheiro deve ser psicólogo, conhecedor dos
segredos da alma e do corpo. Mas não sei cozinhar. Acho que devido a isso que escrevo. Escrevo como quem cozinha.
2 A relação entre cozinhar e escrever tem sido frequentemente reconhecida pelos escritores. É a própria etimologia que revela a
origem comum de cozinheiros e escritores. Nas suas origens, sabor e saber são a mesma coisa. O verbo latino “sapare” significa, a
um só tempo, tanto saber quanto ter sabor. Os mais velhos haverão de se lembrar que, num português que não se fala mais, usava-
-se dizer de uma comida que ela “sabia bem”.
3 Suponho que Roland Barthes também tivesse uma secreta inveja dos cozinheiros. Se assim não fosse, como explicar a
espantosa revelação com que termina um dos seus mais belos textos, A lição? Confessa que havia chegado para ele o momento do
esquecimento de todos os saberes sedimentados pela tradição e que agora o que lhe interessava era “o máximo possível de sabor”.
Ele queria escrever como quem cozinha – tomava os cozinheiros como seus mestres.
4 A leitura tem de ser uma experiência de felicidade. Por isso que Jorge Luis Borges aconselhou aos seus estudantes que só
lessem o que fosse prazeroso: “Se os textos lhes agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois a leitura obrigatória é uma
coisa tão absurda quanto a felicidade obrigatória”.
5 Esta é a razão por que eu gostaria de ser cozinheiro. É mais fácil criar felicidade pela comida que pela palavra... Os pratos de
sua especialidade, os cozinheiros os sabem de cor. Basta repetir o que já foi feito. Mas é justamente isso que está proibido ao
escritor. O escritor é um cozinheiro que a cada semana tem de inventar um prato novo. Cada semana que começa é uma angústia,
representada pelo vazio de folhas de papel em branco que me comandam: “Escreva aqui uma coisa nova que dê prazer!” Escrever é
um sofrimento. A cada semana sinto uma enorme tentação de parar de escrever. Para sofrer menos.
(Adaptado de: ALVES, Rubem. “Escritores e cozinheiros”. O retorno e terno. Campinas: Papirus, 1995, p. 155-158)