“Se alguns setores da sociedade reputam moralmente reprovável a antecipação terapêutica da gravidez de fetos
anencéfalos, relembro-lhes de que essa crença não pode conduzir à incriminação de eventual conduta das mulheres que
optarem em não levar a gravidez a termo. O Estado brasileiro é laico e ações de cunho meramente imorais não merecem a
glosa do Direito Penal. A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser
preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que se conceba o direito à vida
do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de
ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à
integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos
II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República. Os tempos atuais, realço, requerem empatia, aceitação, humanidade e solidariedade para com essas mulheres. Pelo que
ouvimos ou lemos nos depoimentos prestados na audiência pública, somente aquela que vive tamanha situação de angústia
é capaz de mensurar o sofrimento a que se submete. Atuar com sapiência e justiça, calcados na Constituição da República e
desprovidos de qualquer dogma ou paradigma moral e religioso, obriga-nos a garantir, sim, o direito da mulher de
manifestar-se livremente, sem o temor de tornar-se ré em eventual ação por crime de aborto. Ante o exposto, julgo procedente o pedido formulado na inicial, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação
segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do
Código Penal brasileiro”
O trecho acima é reprodução da última página do voto do relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) 54/DF, quando do julgamento desta. Trata-se de uma das mais repercutidas decisões tomadas pelo Supremo
Tribunal Federal no século XXI, tanto pela relevância social da questão posta como pela relevância técnica da posição
expressamente adotada pela Corte, ao concretizar limite de interpretação constitucional há muito debatido na doutrina.
De acordo com o entendimento doutrinário majoritário, o entendimento esposado nesta decisão constituiu: