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Da política ao espetáculo
A rebeldia voltou. E nos lugares mais inesperados. O rastilho foi aceso em Túnis, seguiu para o Cairo e depois para Sanaa, Manama, Damasco − cidades onde ação política não é um direito. Onde as praças tiveram de ser ocupadas com o risco de prisão, tortura e morte. Mesmo assim, as manifestações só ficaram violentas porque as autoridades as atacaram.
A centelha da revolta atravessou o Mediterrâneo e acendeu outras centenas de milhares de pessoas na Grécia e na Espanha, países subitamente forçados ao empobrecimento. Na África, no Levante, no Oriente Médio e na Europa, o que se quer é liberdade, trabalho e justiça.
Nenhuma mobilização foi tão inesperada quanto a que explodiu, no mês passado, do outro lado do Atlântico Norte, numa das cidades mais ricas do mundo: Vancouver, no Canadá. Sua motivação foi frívola. Por 4 a 0, o time local de hóquei no gelo perdeu a final do campeonato. Não houve reivindicação social ou política: chateada, a gente saiu à rua e botou fogo em carros, quebrou vitrines, invadiu lojas.
Fizeram tudo isso com a leveza da futilidade, posando para câmeras de celulares, autorregistrando-se em instantâneos ambivalentes de prazer e agressão. O impulso de se preservarem em fotos e filmes era tão premente quanto o de destruir.
Alguns intelectuais poderiam explicar assim o fenômeno: se o espetáculo do jogo não satisfez, o do simulacro da revolta o compensará; o narcisismo frustrado vira exibicionismo compartilhado.
Em meio ao quebra-quebra, um casal de namorados tentava fugir quando a moça foi atingida pelo escudo de um policial e caiu. O namorado deitou-se ao lado e, para acalmá-la, deu-lhe um beijo.
Um fotógrafo viu apenas dois corpos que pareciam feridos no chão e, sem perceber direito o que fotografava, captou o beijo. Pronto: os jovens viraram celebridades. Namorando há apenas seis meses, o casal cancelou uma viagem à Califórnia para cumprir uma agenda extensa de entrevistas em Nova York. A sociedade do espetáculo não pode parar.
(Adaptado da Revista Piauí, n. 58, julho 2001, p. 55)
A dor como destino
Outro dia, folheando desavisadamente um livro de Schopenhauer (há autores que jamais devemos frequentar desavisadamente...), deparei-me com este trecho:
Trabalho, aflição, esforço e necessidade constituem durante toda vida a sorte da maioria das pessoas. De fato: se todos os desejos, apenas originados, já estivessem resolvidos, o que preencheria então a vida humana? Que se transfira o homem a um país utópico, em que tudo cresça sem ser plantado, em que as aves revoem já assadas, e cada um encontre logo sua bem-amada. Ali os homens morrerão de tédio ou se enforcarão; promoverão guerras, massacres e assassinatos para se proporcionarem mais sofrimento do que o posto pela natureza.
Será mesmo que sofremos porque precisamos? É da nossa natureza ocupar-nos com nossos desejos insatisfeitos, sem os quais vivemos infelizes pela falta de uma causa para viver? Nosso grande poeta Drummond, um schopenhaueriano empedernido, chegou a escrever: “Estamos para doer, estamos doendo". E outro Andrade, o Mário, garantiu-nos: “A própria dor é uma felicidade".
De minha parte modestíssima, ouso dizer: se um dia me sentir absolutamente feliz, tentarei não me matar. Talvez também não conte para ninguém, para que não me matem. De inveja.
(Bráulio Ventura, inédito)